Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Reproduzido dos Jornalistas Livres
Depois de embalar o sonho das “pessoas de bem”, que vestiram verde e amarelo e foram às ruas apoiar o pretenso combate à corrupção, o fim da Operação Lava Jato está próximo e não poderia ser dos mais melancólicos.
Tudo indica que ela será substituída pela criação da Unidade Nacional Anticorrupção (Unac) por parte do Ministério Público Federal. A Unac, se realmente prosperar, terá sede em Brasília e concentrará ações atualmente dispersas entre as unidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. A proposta é do próprio procurador-geral da República, Augusto Aras que, diferentemente dos seus antecessores, foi escolhido pelo presidente Bolsonaro sem levar em conta a lista tríplice elaborada pela categoria.
A decisão de Aras é uma das consequências práticas da guerra que passou a ser travada entre bolsonaristas e lava-jatistas, após a demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça. Moro, que foi conivente com parte dos abusos cometidos pelo governo enquanto esteve no poder, saiu atirando e acusando Bolsonaro de “tentar interferir politicamente na Polícia Federal”.
Um dos principais beneficiados pela Lava Jato, Bolsonaro, que dificilmente teria sido eleito se não fosse a criminalização e o ódio ao PT que ela disseminou, viu na atitude de Moro uma forma de atingir seu governo, mas, principalmente, de se cacifar para a disputa presidencial em 2022. É importante lembrar que o apoio de Moro junto à opinião pública, no momento em que deixou o governo, era significativamente superior ao do próprio Bolsonaro.
Os partidos de oposição, por sua vez, há muito denunciam os desmandos da Lava Jato e como ela, em seis anos de existência, tem cometido todo tipo de ilegalidade. Além de grampear os telefones dos advogados que defendem o ex-presidente Lula nos processo do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, os advogados Cristiano Zanin e Valeska Teixeira Martins lembram que o próprio Lula foi condenado sem provas e por “atos indeterminados”.
Vale dizer: depois de anos revirando a vida e quebrando todos os sigilos bancários, fiscal e telefônico do ex-presidente Lula, de sua família e amigos, não foi encontrado nada que pudesse incriminá-lo.
Às denúncias dos advogados de Lula vieram se somar, em meados do ano passado, a série de vazamentos publicados pelo site The Intercept BR. Eles mostraram conversas dos procuradores que atuam na Lava Jato, em Curitiba, trazendo à tona muito do seu modus operandi. A série, que ficou conhecida como #VazaJato, mostrou, por exemplo, que Moro não atuou apenas como juiz, mas como auxiliar da própria acusação.
Caía por terra o discurso de “juiz imparcial” sob o qual Moro sempre tentou se acobertar. Os vazamentos deixaram visível também a perigosa proximidade entre os lava-jatistas e integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF). Quem se lembra de um exultante procurador chefe em Curitiba, Deltan Dallagnol em conversa com Moro, assegurando “In Fux we trust”? Fux, no caso, é o ministro Luiz Fux.
As denúncias da #VazaJato correram mundo e foram destaque nos principais jornais da Europa e dos Estados Unidos, contrastando com o silêncio que sobre elas reinou na mídia brasileira. Silêncio explicado pelo fato da mídia local ter se valido das cinematográficas operações da Lava Jato para disseminar o ódio ao PT, patrocinar o golpe contra a presidente Dilma Rousseff (impeachment sem crime de responsabilidade é o que?), prender e impedir Lula de disputar as eleições de 2018, abrindo espaço para a vitória de Bolsonaro e suas políticas antipopulares, antinacionais e de submissão aos interesses dos Estados Unidos.
Na semana passada (1/7), nova reportagem do The Intercept BR, em parceria com a agência de jornalismo investigativo Pública, mostrou algo ainda mais grave e que veio confirmar denúncias que pairavam sobre a Lava Jato: a interferência de agentes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e do próprio FBI, polícia e serviço de inteligência daquele país, em suas ações.
Quem se lembra que um dos policiais que escoltou Lula, quando ele saiu da prisão para ir ao enterro do seu neto, usava adesivo que não era da Polícia Federal?
As novas revelações do The Intercept BR/Pública mostram uma parceria “informal” entre Lava Jato e autoridades estadunidenses que, exatamente por ter se dado de maneira informal, é ilegal. Se o compromisso da Lava Jato fosse realmente combater a corrupção e não atender aos interesses de setores dos Estados Unidos (deep State?), bastaria ter se pautado pelos canais legais. Desde 2001, com o decreto 3.810, Brasil e Estados Unidos firmaram acordo prevendo procedimento escrito e formal, intermediado por órgãos específicos de lado a lado.
Em outras palavras, mais do que uma operação anticorrupção, como sempre tentou se mostrar, a Lava Jato começa a ter sua verdadeira face desenhada. Ela é parte do kit da “guerra híbrida” adotado pelos Estados Unidos para intervir na política e na vida de países. No caso brasileiro, as razões são muitas. Desde o início dos anos 2000, estudos apontavam que o Brasil tinha tudo para, em menos de duas décadas, se transformar em potência mundial.
Esses estudos, claro, incomodaram a grande potência mundial e potência maior do hemisfério, mas acabaram sendo deixados de lado em função dos ataques terroristas às torres gêmeas, em 2001. Nesse meio tempo, assumiu o poder no Brasil e também na maioria dos países da América do Sul, governos populares que buscaram o desenvolvimento de suas economias e parcerias no cenário internacional.
O Mercosul foi fortalecido, a Unasul foi criada e o Brasil esteve à frente do surgimento do BRICS e passou a integrá-lo, juntamente com Rússia, Índia, China e África do Sul.
Como se isso não bastasse, o Brasil anunciou em 2007 a descoberta do pré-sal e em 2014, apesar da pesada campanha da mídia para derrotar o PT, Dilma Rousseff consegue se reeleger, com a agremiação dando início ao seu quarto mandato à frente da presidência da República.
Para alguns, tudo isso não passa de “teoria da conspiração”, mas se os fatos forem observados, coincidentemente as ações da Lava Jato apontam para a desorganização e estabelecimento do caos na economia brasileira e para a criminalização de governos que possibilitaram inúmeros avanços ao país.
Outro efeito prático da Lava Jato foi, sob o argumento de “combate à corrupção”, levar empresas brasileira como a construtora Odebrecht praticamente à falência, obrigada a demitir mais de 230 mil funcionários. Já a Petrobras, além da campanha de desmoralização a que foi submetida, teve que pagar multas milionárias para acionistas nos Estados Unidos.
Em 2014, os serviços de inteligência dos Estados Unidos já tinham sido pegos com a boca na botija, espionando a então presidente Dilma e os contratos para exploração do pré-sal que estavam sendo preparados pela Petrobras. O então presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, nunca negou as espionagens e, até onde se sabe, não pediu desculpas pela ação dos serviços de inteligência. Essa história, em detalhes, está registrada no documentário do diretor estadunidense Oliver Stone, intitulado Snowden. O documentário está disponível na Netflix.
Vale observar ainda que operações semelhantes à Lava Jato (ou mesmo seus desdobramentos) tiveram lugar na América do Sul, redundando em desorganização da economia desses países, criminalização de governantes populares, eleição de governos neoliberais ou mesmo em golpes de Estado, sempre sob o argumento do “combate à corrupção”.
Voltando a Moro e Dallagnol, nesses seis anos de Operação Lava Jato, eles passaram de figuras inexpressivas a estrelas do noticiário da mídia brasileira (TV Globo à frente). Só que agora estão às voltas para explicar o inexplicável.
Como se aliaram a integrantes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e a agentes do FBI contra empresas brasileiras? Como incriminaram e condenaram, sem provas, o ex-presidente Lula? Como agiram de maneira nitidamente partidária, uma vez que as condenações recaíram quase que exclusivamente sobre o PT e aliados, deixando de fora notórios corruptos do PSDB?
Apesar dessas questões já serem levantadas pelos advogados de Lula antes mesmo dele passar 580 dias na prisão, só agora ganharam ressonância.
Por mais de seis anos – março de 2014 é considerado o seu começo – a Operação Lava Jato mandou e desmandou no Brasil. Além do “combate à corrupção” ter sido transformado pela direita e pela mídia corporativa em problema número 1 do país, em nenhum dos Poderes houve quem se dispusesse a enfrentá-la.
A presidente Dilma Rousseff, com sua postura republicana, jamais interferiu ou tentou interferir nessas ações. No Congresso Nacional, a maioria dos integrantes, mais preocupada com as eleições que aconteceriam em poucos meses, não deu atenção ao assunto e, pelo lado do Judiciário, tudo parecia certo. Só que não.
As operações que tiveram início com a prisão, pela Polícia Federal, de um dono de posto de gasolina em Brasília (daí o nome Lava Jato) onde havia uma casa de câmbio utilizada para evadir divisas do país, rapidamente levou o Ministério Público Federal em Curitiba a criar uma equipe de procuradores para atuar no caso, sob o argumento de que já investigava um dos doleiros (Albert Youssef) envolvidos em transações com o dono do posto de gasolina.
Numa história que ainda precisa ser devidamente esclarecida, uma investigação que deveria ter ficado em Brasília foi parar na capital do Paraná. Mais ainda: a descoberta de que Yousseff havia dado de presente uma Land Rover para um ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, jogou a empresa no olho do furacão.
Num passe de mágica, os procuradores em Curitiba, chefiados por Dallagnol, começaram a buscar, de todas as formas, um elo entre a corrupção de diretores da Petrobras e o ex-presidente Lula. Nenhum outro presidente lhes pareceu suspeito. Moro, aliás, foi contra investigar Fernando Henrique Cardoso, para não “melindrar apoio importante”.
Um mês e pouco depois, a operação já contava 30 pessoas presas e 46 indiciadas pelos crimes de formação de organização criminosa, crimes contra o sistema financeiro nacional, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. Nas 71 operações acontecidas desde então, mais de 100 pessoas foram presas e quase o mesmo número condenadas.
Os processos contra os acusados, o tempo em que ficavam presos sem julgamento, as condições em que eram mantidos encarcerados, nada disso parecia importar para a Justiça brasileira e muito menos para a mídia. Enquanto isso, vazamentos, cujo timing político era nitidamente calculado, foram fundamentais para impedir, em março de 2016, que Lula se tornasse chefe da Casa Civil de Dilma, e, em 2018, contribuíram para torpedear a candidatura do petista Fernando Haddad à presidência da República.
Ninguém, obviamente, é contra o combate à corrupção. Mas o que chama atenção é que a Lava Jato não combateu a corrupção. O que ela combateu foi o PT, a democracia, as principais empresas brasileiras e a soberania do país. Uma das primeiras medidas econômicas aprovadas pelo Congresso Nacional, depois do golpe contra Dilma e da posse do ilegítimo Michel Temer, foi um projeto do senador tucano José Serra (SP), alterando a legislação sobre o pré-sal brasileiro, a fim de beneficiar as empresas multinacionais.
Para complicar ainda mais essa história, que em muitos aspectos se assemelha a um triller de cinema, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki, morre, em janeiro de 2017, num acidente de avião. Teori era o relator da Lava Jato na Suprema Corte e estava às vésperas de retirar o sigilo de cerca de 900 depoimentos e homologar as 77 delações da Odebrecht. Ele vinha publicamente fazendo censuras à atuação do juiz Moro e da própria Lava Lato.
Sua família nunca acreditou no resultado da perícia sobre o acidente.
Depois da morte de Teori, opera-se uma curiosa coincidência. Todas as pessoas chave na Lava Jato, sejam seus integrantes, sejam aqueles, em instâncias superiores, que vão julgar os atos de seus integrantes, passam a ser de Curitiba ou vinculados a Curitiba: Moro, o desembargador do TRF-4, João Pedro Gebran Neto, o ministro do STJ, Félix Fischer, e o ministro que ocupa a relatoria da Lava Jato no STF após a morte de Teori, Edson Fachin.
Fazendo um corte para os dias atuais, o destino da Lava Jato, mesmo com todas as suas ilegalidades, poderia ter sido outro se não fosse a ambição de Moro. Ao querer incluir em seu currículo além do cargo de ministro da Justiça (negociado com Bolsonaro ainda na campanha eleitoral) uma vaga no STF ou mesmo a presidência da República, entrou em rota de colisão com Bolsonaro.
O problema para Bolsonaro é que Moro acabou se transformando em “queridinho” de parte da direita brasileira (Globo à frente) e, segundo o sociólogo português, Boaventura de Souza Santos, em candidato dos Estados Unidos à presidência do Brasil, a pessoa ideal para manter o país atrelado aos interesses do Tio Sam. Bolsonaro e Moro estão, assim, disputando num mesmo campo.
É importante lembrar também que figuras como o ex-advogado da Odebrecht, Rodrigo Tacha Duran, que, há mais de três anos, vem tentando fazer delação premiada contra Moro, parece que finalmente conseguirá. Entre outras coisas, Duran tem dito dispor de provas da existência de vendas de sentenças por parte da “República de Curitiba” e de propina ligando essas sentenças, as delações premiadas e advogados amigos de Moro.
Os integrantes da Lava Jato, obviamente, não estão dispostos a aceitar seu fim passivamente. Na última quinta-feira (2/7), numa tentativa de mostrar serviço, a Lava Jato, que andava meio sumida, reapareceu fazendo uma operação de busca e apreensão na casa do tucano José Serra. Há pelo menos dez anos que as denúncias contra Serra são conhecidas e não deixa de ser esquisito só agora a turma de Curitiba, através do braço de São Paulo, ter resolvido agir.
A explicação mais plausível parece ser a de que a Lava Jato, a fim de tirar o foco das denúncias de que vem sendo alvo, usou essa operação como manobra diversionista. Diante da ameaça de extinção, nada melhor do que uma ação em cima de um notório corrupto que sempre esteve acima da lei, para tentar se mostrar imparcial.
Outra prova de que a turma da Lava Jato está se sentindo acuada foi o adiamento do julgamento de Dallagnol no Conselho do Ministério Público, pelo Power Point contra Lula. Marcado para amanhã (7/7), última sessão antes das férias do meio de ano, o adiamento surpreendeu alguns conselheiros e foi interpretado como medo de derrota, especialmente diante das recentes revelações da #Vazajato.
Se as previsões do ministro do STF, Gilmar Mendes, estiverem corretas, em setembro os dois processos impetrados pela defesa de Lula arguindo a suspeição de Moro para julgá-lo serão analisados. Some-se a isso que a Comissão de Direitos Humanos da ONU já tem em seu poder a documentação envolvendo o julgamento e as condenações, sem provas, de Lula.
Pelo “conjunto da obra” e por razões diferentes, o fim da Lava Jato está próximo e aqueles que se orgulharam de ter vestido verde e amarelo e ido às ruas apoiar seus “heróis” vão começar a ter vergonha.
Fizeram papel de bobos.