Caso Mari Ferrer: decisão de tribunal catarinense escancara machismo na justiça brasileira

Por Marcos Aurélio Ruy

Viraliza na internet a decisão do juiz Rudson Marcos, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em absolver André de Camargo Aranha (na foto acima) da acusação de estupro de Mariana Ferrer. O vídeo da audiência mostra o advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho expondo a vítima a humilhação, sem que o juiz tomasse providência. Nem mesmo o advogado de defesa tentou impedir o seu colega de ofender Mari Ferrer, como é conhecida.

Não fosse uma reportagem do Intercept Brasil, publicada nesta terça-feira (3), esse descalabro jurídico ficaria despercebido. Também circula pelas redes sociais, um abaixo-assinado em favor de Mari Ferrer, exigindo providências sobre o caso.

Acesse a assine o abaixo-assinado por justiça a Mari Ferrer.

Juristas informam que está tudo errado nessa audiência. Porque um advogado não pode em hipótese alguma humilhar uma pessoa como ocorreu. Além da falta de atuação do advogado de defesa que não fez nada para impedir a humilhação de sua cliente. E o juiz calou-se diante do absurdo.

Como disse o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, em sua conta no Twitter, “as cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram.”

O advogado do réu foi agressivo e insinuou maledicência da vítima sem ninguém, além da própria vítima, pedir respeito para o tribunal. “Tu vive disso? Esse é teu criadouro, né, Mariana, a verdade é essa, né? É teu ganha pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem?”, disse Cláudio Gastão.

“O caso denuncia a seletividade da justiça brasileira e o machismo estrutural de nossa sociedade, que transformam as vítimas em culpadas em julgamentos de acusados de estupro, se o réu for branco e rico”, argumenta Celina Arêas, secretária da Mulher Trabalhadora da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB). A sindicalista questiona a decisão porque “a palavra da vítima e a acusação feito pelo Ministério Público com base em fatos foram ignoradas pelo juiz”.

A blogueira Mariana Ferrer acusa o empresário André de Camargo Aranha de tê-la estuprado em dezembro de 2018, em um camarim privado, durante uma festa em um beach club em Jurerê Internacional, em Florianópolis. Dois anos depois o Tribunal de Justiça de Santa Catarina absolve o réu com o argumento de “insuficiência de provas” ao argumentar não ter condições de comprovar a acusação feita pela jovem.

A vítima Mari Ferrer é humilhada em julgamento

Depois disso, a hashtag #justiçapormariferrer alcançou aos trend topics do Twitter. Nesta terça-feira (3), a jornalista Schirlei Alves, do Intercept, publicou matéria denunciando a ação do tribunal catarinense (Leia aqui).

“Mariana, na ocasião com 21 anos, trabalhava como promotora do evento, responsável por divulgar a festa nas redes sociais. Um vídeo, que mostra Mariana grogue subindo uma escada com a ajuda de Aranha em direção a um camarim restrito da casa, foi vazado na internet. Eles sobem os degraus às 22h25. Seis minutos depois, ela desce, seguida de Aranha. A polícia só solicitou o material de forma oficial ao beach club meses depois do início das investigações, e a boate alegou que o dispositivo de armazenamento exclui as imagens após quatro dias. Por isso, apesar de a boate ter 37 câmeras de segurança, não foi possível recuperar imagens do resto da noite. Mesmo assim, o vídeo vazado na internet foi incluído no processo”, denuncia Schirlei.

O caso viralizou por causa do termo “estupro culposo”, utilizado pelo novo promotor nomeado para o caso, Thiago Carriço de Oliveira. Para ele, “não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto intenção de estuprar – ou seja, uma espécie de ‘estupro culposo’”. Como o termo não existe na jurisprudência, o juiz alegou “insuficiência de provas”. A injustiça ficou tão escancarada que a Corregedoria Nacional de Justiça decidiu apurar a conduta do juiz Rudson Marcos, do promotor e do advogado de defesa do réu inocentado.

“Diante de tantos retrocessos que acontecem no Brasil, percebemos que a violência contra a mulher, especificamente a violência sexual, está ficando cada vez mais difícil de combater”, acentua Gicélia Bitencourt, secretária da Mulher Trabalhadora da CTB-SP.

Principalmente porque “parte do Judiciário se despe da imparcialidade necessária e colocam suas opiniões pessoais para favorecer seus iguais.” Para Gicélia, “o correto é que os tribunais superiores anulem esse julgamento e punam todos os responsáveis por essa descabida decisão, em pleno século 21”. Porque “o Brasil já está entre os países mais violentos contra as mulheres e o número de casos de estupram nos levam à barbárie de tão numerosos sem que muitos sequer sejam denunciados”.

Ângela Guimarães, presidenta da União de Negros pela Igualdade (Unegro) se revolta com a decisão. “Mais uma vez, observamos como funciona a justiça brasileira. As mulheres e a população negra são os seus alvos. Os homens brancos ricos que comandam as estruturas de poder são aqueles dignos de sua proteção”.

Ângela argumenta que “não tem como alguém estuprar alguém sem intenção. Absolver alguém, com essa alegação, deixa nítido que a vítima pouco importa para eles”, principalmente “se o réu for branco e rico. Até quando a sociedade vai tolerar essas arbitrariedades?”.

Em sua decisão o juiz Rudson Marcos afirma que “a meu sentir, o relato da vítima não se reveste de suficiente segurança ou verossimilhança para autorizar a condenação do acusado. Em que pese seja de sabença que a jurisprudência pátria é dominante no sentido de validar os relatos da vítima, como prova preponderante para embasar a condenação em delitos contra a dignidade sexual, nos quais a prova oral deve receber validade maior, constata-se também que dito testemunho precisa ser corroborado por outros elementos de prova, o que não se constata nos autos em tela, pois a versão da vítima deixa dúvidas que não lograram ser dirimidas”.

Para Gicélia, a decisão do tribunal catarinense se tornou insustentável por não se ater aos fatos. “As mulheres, vítimas de estupro, sofrem várias vezes. No ato da violência. Depois ao ver sua vida exposta brutalmente. E no julgamento do crime onde elas acham que serão acolhidas, passam por uma triste humilhação e intimidação”, conclui.