Açúcar e afeto pro Chico e pras feministas

Do Blog Escreva Lola Escreva (Foto: Leo Anversa/O Globo)

Ontem saiu uma matéria no site Metrópoles dizendo que Chico Buarque não irá mais cantar “Com açúcar, com afeto”. A segunda linha trazia a informação “A razão são as críticas do movimento feminista ao teor machista da letra”. 

Ouça a música Com Açúcar, com afeto, de Chico Buarque; cantada por Nara Leão

Tinha um link embaixo das palavras “movimento feminista”, então qual foi a primeira coisa que fiz, antes mesmo de ler o resto da matéria? Cliquei lá. Queria muito saber quem era esse tal movimento feminista (que é tão plural) que considera a letra machista. Seria um grupo que fez um abaixo-assinado explicando os motivos? Algumas feministas que haviam se manifestado individualmente? Quais? Onde? Quando? 

Pois bem. Veja o que aparece quando você clica no link do “movimento feminista”: 

“Foi mal! Não achamos essa página”. E eu fiquei sem resposta às minhas perguntas. 

Pelo jeito eu fui uma das poucas a ter essas dúvidas, já que o link nunca funcionou. E assim, sei que não é todo mundo que desconfia de afirmativas sobre o “movimento feminista”, mas você não fica nem com uma pulguinha atrás da orelha quando lê algo tão genérico sobre o movimento feminista? 

Uma velha tática machista é criar falsas polêmicas em nome do feminismo para deslegitimar os feminismos. Uns anos atrás circulou um texto sobre coisas ultrajantes ditas por uma feminista no programa do Jô Soares. Não me lembro o que ela falava nem o nome dela. O fato é que ela não existia. Haviam inventado uma personagem que seria uma famosa feminista brasileira pra falar altas bobagens. Não há qualquer registro nem da existência dessa feminista, nem do que ela falou, nem de um programa do Jô com ela.

Mascus adoram fazer isso. Lembro quando eles criaram um ato em que feministas iam à praia sem absorvente, com o sangue escorrendo pelas suas pernas, e como, segundo esse grupo feminista, todas as mulheres deveriam fazer o mesmo. Tudo mentira. Mas um monte de gente espalhou o texto, sempre com o propósito de provar como feminista é maluca.

Não estou dizendo que a matéria do Metrópoles seguiu esse roteiro. Ela é assinada por Guilherme Amado, um jornalista sério que eu admiro. E ela dá outros detalhes: Chico anunciou essa decisão na série O canto livre de Nara Leão, em que ele narra que a canção de 1967 foi encomendada por Nara, que pediu uma música de uma mulher sofredora. (Só que faltou dizer que Chico não canta a música há quase 40 anos. Não foi algo que ele decidiu anteontem. Foi até antes da internet!).

Chico foi procurado pela reportagem mas não quis comentar quando tomou essa decisão e se ela envolveria outras de suas músicas. O que sabemos é o que ele diz na série: “Eu gostei de fazer [a canção]. A gente não tinha esse problema. É justo que haja, as feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim. Elas têm razão. Eu não vou cantar ‘Com Açúcar com Afeto’ mais e, se a Nara estivesse aqui, ela não cantaria, certamente”. 

Bom, eu sou feminista desde os 8 anos de idade, sou autora de um dos maiores blogs feministas do país (esta semana completa 14 anos), e sempre adorei “Com Açúcar, com Afeto”. Sempre cantarolei e não pretendo parar. Pra mim a música nunca foi machista. É uma denúncia a uma situação machista que, infelizmente, não ficou no passado. Muitas mulheres hoje ainda vivem a submissão daquela mulher da música. Muito menos mulheres hoje que há 54 anos, ainda bem. Graças a nós e a nossa luta.

Na canção temos uma mulher, o eu-lírico, narrando a sua experiência. Livros, filmes, peças, poemas, histórias em quadrinho, canções — todas as obras podem incluir personagens machistas, racistas, LGBTfóbicos, capacitistas, etaristas, gordofóbicos etc. Seria até estranho se não incluíssem, já que nosso mundo está cheio de gente assim. E essas personagens podem ser protagonistas dessas obras. Podem ser narradoras. Criar um personagem preconceituoso não faz com que a obra ou o autor seja automaticamente preconceituoso.

E nem toda obra precisa ser empoderadora pra ser feminista. Alertar sobre opressão também é feminismo. Já vi feminista americana dizendo que o grande filme Thelma e Louise não é feminista porque não tem final feliz. Ué, isso importa? Toda a jornada e transformação daquelas duas personagens, a sororidade que formam entre elas, a libertação e o primeiro orgasmo de Thelma — nada disso é válido? Mas perceba que é possível discordar de feministas sem atacá-las, sem chamá-las de lacradoras ou censoras ou, citando “Com Açúcar, com afeto”, sei lá o quê.  

Mas olha só, quando você ouve/lê a explicação do Chico pra não cantar mais a música, no que você pensa que aconteceu para que ele tomasse essa decisão? 1) Uma horda de feministas enfurecidas ameaçaram boicotá-lo, cancelá-lo, deixar de amá-lo (posso dizer sem medo de errar que a maior parte das feministas somos apaixonadas pelo Chico), se ele não jogasse a canção no lixo? 2) Uma feminista mandou pro Chico um email com a foto de sua pistola calibre 45 e a mensagem “Cante essa música mais uma vez e você vai ver o que é bom pra tosse, seu comunista safado”? 3) Terríveis feministas peludas e bigodudas fizeram piquete em frente ao estúdio e foram a um show com cartazes de “Meu Açúcar, Meu Afeto”? ou 4) Ao longo dos anos, uma ou outra amiga feminista do Chico chegou pra ele e disse “Vem cá, você não acha que essa música tá um pouco datada?” 

Minha aposta é a alternativa 4. Então por que tanta gente tá reagindo xingando feministas? O PCO (Partido da Causa Operária), por exemplo, que há anos decidiu que o maior problema da esquerda, e quiçá do Brasil e do mundo, é o identitarismo, falou que as feministas finalmente conseguiram algo que nem a ditadura militar conseguiu: censurar o Chico! Uau, como essas feministas malvadas são poderosas! 

Na minha timeline, várias mulheres, imagino que muitas feministas, vieram manifestar sua revolta contra… as feministas. Uma disse que continuaria cantando “Com Açúcar, com Afeto” a plenos pulmões e mandou as feministas tomarem banho. (Dica: geralmente nos mandam lavar louça). Quem tá te impedindo de cantar, moça? Outra disse que daqui a pouco vamos querer cancelar “Mulheres de Atenas” e “Geni” (acho que não: a primeira é claramente irônica, e o alvo da segunda é quem joga pedra na Geni, nunca Geni). Outra disse que sempre se sentiu incomodada com essa música (arte também é feita pra incomodar). 

Outra disse: a gente vivendo o inferno de um governo fascista, com eleições pra este ano, e as feministas preocupadas com uma música?! Pois é, eu realmente duvido que muitas feministas estejam prontas pra pegar em armas por conta de uma canção de meio século atrás. Mas eu também posso perguntar: a gente vivendo o inferno de um governo fascista, com eleições pra este ano, e o pessoal descendo a lenha nas feministas, nos identitários? Será que esse pessoal não têm nada mais útil pra fazer não?

O fato é que um cantor decidir não cantar mais uma música não é censura. Sting, outro divino e maravilhoso que sempre esteve ligado a causas progressistas, já contou como ficou horrorizado ao ver que a canção mais popular do Police, “Every breath you take” — a história de um stalker obsessivamente vigiando alguém, provavelmente sua ex –, era vista por muitos como uma canção romântica, tocada em casamentos. Sting não parou de cantar a música porque ela representa um quarto de toda sua renda. Mas ele mesmo a problematizou! Ele está lacrando? Censurando sua própria música? (aliás, dá pra problematizar uma obra e continuar adorando? Depende de cada um. Pra mim dá). 

Teve gente que me informou que Madonna parou de cantar “Material Girl”. Não sei. Sei que o Frank Sinatra detestava de coração “My Way“, que é tipo a canção favorita de quase todo machista (ou, vamos dizer assim, o hino tocado no velório de tantos avôs). Ele achava que a música não o representava, embora tenha sido adaptada do francês pra ele, e também não aguentava mais cantá-la em cada show em Las Vegas (eu gosto da música, mas cada vez que a ouço, mais penso que ela é irônica, porque não é possível. A parte “devo dizer, não de um jeito tímido” a entrega). Sinatra não pôde deixá-la de lado porque seu público a exigia. Era lucrativa demais pra ser escamoteada.

Pra ser sincera, eu nem vi feministas problematizando “Com Açúcar, com afeto”. O que vi foi o pessoal problematizando o identitarismo em geral e as feministas em particular. Vi gente confundindo a decisão pessoal de um grande artista com censura. Chico tem quase 500 magníficas composições no seu repertório. Ele não tem como cantar todas as 500 em cada show. Escolhe as que quer. Nenhuma vai sumir do catálogo. É fácil encontrar qualquer uma no YouTube.

Existe um termo, snowflake (floco de neve, ou floquinho de neve especial), usado pejorativamente pra classificar gente sensível demais, que se ofende com facilidade (ou seja, pra xingar uma geração ou os identitários). Mas quem critica identitários também parece ser sensível demais, não? Afinal, basta alguém problematizar uma obra que os caras já gritam que é censura, cancelamento, linchamento, lacração! Problematizar, criticar, apontar os preconceitos de uma obra não é censura. Censura é proibir a obra. Ah, censura é também proibir a crítica à obra!

Bom, Chico, agradeço a confiança nas feministas. Por mim, você pode cantar “Com Açúcar, com Afeto” até o final de sua vida, que espero que seja eterna. E se precisar de alguém pra formar um dueto, tamos aqui pra isso.