A pena de morte para os sem-abrigo

Embora sejam o país capitalista mais rico do mundo, os Estados Unidos condenam boa parte do seu povo a uma pobreza extrema e degradante. A situação se agravou no rastro da superprodução na construção civil em 2007, que fez explodir a bolha imobiliária e se desdobrou no despejo de milhões de famílias endividadas e sem emprego, patrimônio ou renda. O cenário é triste e cruel para os mais pobres.

O número de pessoas sem-teto no centro do capitalismo mundial foi de 552.830 em 2018. Constitui um sinal claro, irrefutável, da irracionalidade e decadência deste sistema que tem por fundamento a exploração do homem pelo homem e, em profunda crise, caminha celeremente em direção à barbárie fascista, como sugere o belo artigo da escritora estadunidense Eva Ottenberg, reproduzido abaixo. ” A profundidade do ódio aos pobres nos EUA é verdadeiramente chocante”, constata a romancista.

Eva Ottenberg*

O aspecto verdadeiramente maligno disto é aquele que trata a pobreza como prova de psicose perigosa e selvagem. O fracasso econômico nessa brutal selva capitalista tardia torna-se doença ou crime. Uma combinação mortal. E se os sem-abrigo conseguem escapar dos polícias que querem trancá-los em pequenas gaiolas, ainda enfrentam ameaças existenciais nas ruas, principalmente a morte por exposição ou por criminosos violentos.

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Fotografia de Nathaniel St. Clair

Pode medir-se a profundidade de uma civilização pela forma como ela trata os seus pobres, os muito jovens, os idosos e os doentes mentais.  Seja qual for a unidade de medida, a nossa aqui no Império Excecional é bárbara. Veja-se o Presidente da Câmara de Nova York, Eric Adams, e as suas  declarações sobre os sem-abrigo. Ele ficou conhecido por façanhas como proclamar que vai encarcerar pessoas por comportamento errático. Como os sem-abrigo são erráticos – ou começaram assim, pois foi essa, em parte, a razão por que perderam o abrigo, ou a dureza da vida corroeu os seus bons costumes – eles são a população-alvo para ser presa. Para não ser ultrapassado, o candidato presidencial Donald “Eu é que sou o verdadeiro presidente” Trump jura que enviará os sem-abrigo para acampamentos fora das cidades, para que deixem de “arruinar” as áreas urbanas. A equação entre os seres humanos e o lixo deve fazer tremer todas as antenas antifascistas.

Antigamente, tínhamos governos preocupados com as causas profundas da pobreza e líderes que procuravam amenizá-la com boas ideias, como a habitação pública. Bem, depois de décadas de imprensa histérica e péssima, a habitação pública recebeu pouco financiamento e o número de pessoas pobres a que dá resposta encolheu lamentavelmente desde o seu apogeu em meados do século XX. Isto significa mais pessoas dormindo nas ruas.

Veja-se o programa do vale-habitação da cidade de Nova York para combater a falta de casas. Por alguma razão burocrática inexplicável, está abandonando os inquilinos. Os vales cobrem uma grande percentagem do aluguel de uma pessoa, numa cidade famosa pelos custos astronômicos de habitação. “Poucas ferramentas são tão importantes  como os vales quando se trata de abordar o problema dos sem-abrigo na cidade de Nova York”, relatou Mihir Zaveri no New York Times em 5 de abril, “mais de 26.000 famílias usaram o programa para encontrar apartamentos desde 2018”. Por isso, a disfunção de um órgão municipal, que leva a expulsar as pessoas do programa de vales, é um desastre. Muitas dessas almas sem sorte acabam condenados a morar em refúgios para sem-abrigo ou nas ruas. E isso muitas vezes é fatal.

Mais de 815 moradores de rua morreram em locais públicos em Nova York desde 2022, mais recentemente com destaque para Jordan Neely, cuja obstinada miséria ofendeu um passageiro de metrô, Daniel Penny, que estrangulou Neely até a morte. Penny é branco, Neely era negro, embora o ex-fuzileiro Penny tenha afirmado, em 20 de maio, que não é um supremacista branco. A media e o Presidente da Câmara Adams minimizaram a crueldade desse crime, porque, de acordo com Adams, “havia sérios problemas de saúde mental em jogo aqui”. O que mais se esperaria de um ex-policial?  Quando é chamada para ajudar a dispersar alguma desordem, a polícia costuma atirar e matar. Adams involuntariamente insinua que a resposta nazista aos esquizofrênicos é aceitável: assassiná-los.

Não surpreende ninguém: a extrema-direita apoia o assassino. “Uma recolha de fundos online para a sua defesa legal”, informou o Times em 19 de maio, “acumulou mais de US$ 2,6 milhões em doações depois de ter sido promovida por políticos conservadores”. A profundidade do ódio aos pobres nos EUA é verdadeiramente chocante. As pessoas contribuem voluntariamente para aqueles que os livram repugnantemente dos despossuídos e financiam alegremente aqueles que os sufocam até a morte. Há uma palavra para isso: depravação. E é para lá de depravado o nosso vizinho a norte, o Canadá, que defende o suicídio assistido pelo Estado como solução para a pobreza em geral e para os sem-abrigo em particular.

Enquanto isso, o Washington Post relata, em 22 de maio, que idosos sem-abrigo inundam abrigos que não podem acomodar as suas necessidades. “O governo estima que quase um quarto de milhão de pessoas com 55 anos ou mais são sem-abrigo nos Estados Unidos, durante pelo menos parte do ano de 2019”, informou o Post e, este ano, o número de idosos sem-abrigo aumentou. De fato, os idosos constituem a grande fatia de não domiciliados que mais cresce. Uma boa maneira de passar o outono da vida dormindo no passeio, ao lado do psicótico e totalmente indefeso.

Adams quer retirar das vistas do público aqueles que “parecem doentes mentais”. O objetivo não é tratá-los ou curar as suas feridas psicológicas, caso em que tal retirada seria aceitável, louvável até.  Mas não, o propósito de Adams é prendê-los, para que o seu ser miserável não ofenda as sensibilidades dos ricos e mega-ricos que consideram os centros das cidades como seus parques de lazer. “Políticas como o Tribunal CARE do governador da Califórnia, Gavin Newson, e inúmeras portarias ‘anti-acampamento’… permitem a remoção e detenção de pessoas sem-abrigo e consideradas doentes mentais”, de acordo com o Truthout em 6 de maio, “sob ameaça de prisão involuntária ou mesmo de ficar sob tutela da autoridade”. Supostamente compassivas, essas políticas ficam muito aquém de fornecer tratamento adequado para os loucos ou habitação adequada para aqueles que a não têm.

O aspecto verdadeiramente maligno disto é aquele que trata a pobreza como prova de psicose perigosa e selvagem. O fracasso econômico nessa brutal selva capitalista tardia torna-se doença ou crime. Uma combinação mortal. E se os sem-abrigo conseguem escapar dos policiais que querem trancá-los em pequenas gaiolas, ainda enfrentam ameaças existenciais nas ruas, principalmente a morte por exposição ou por criminosos violentos.

O número de mortos sem-abrigo, relata o New York Times em 13 de maio, “no condado de San Diego, aumentou quase 10 vezes na última década”. O mesmo acontece em Los Angeles, Phoenix, Austin, Denver e Seattle. Acontece que não ter um abrigo sobre a cabeça é fatal. Há o frio no inverno, o calor extremo agravado pelas mudanças climáticas no verão e o perigo inerente de viver em público, agora reforçado pela fúria dos justiceiros, alimentados por políticos ambiciosos como o presidente da câmara, Adams.

Os riscos e a miséria enfrentados pelos sem-abrigo não contam muito para um público incitado à sua situação por ideologia e mentiras, um público que só quer que a falta de habitação desapareça. Uma lavagem cerebral pública feita por políticos reacionários e seus porta-vozes mediáticos para pensar que a única suposta solução é a prisão ou expulsão desses  vagabundos das cidades e levá-los para o campo. Bolsas de habitação,vales, apartamentos acessíveis e a estrutura administrativa necessária para criá-los não são apetecíveis. Não ganham votos de políticos fascistas. O que rende é a histeria pública contra pessoas sem dinheiro, com um comportamento estranho e manter esse frenesim em constante fervura. Chama-se demagogia.

Infelizmente para essas pessoas muito pobres, vivemos na Era do Demagogo. A maioria dos políticos  inclinar-se-á para ela sempre que ela lhes trouxer votos. Mas os que merecem o título a tempo inteiro são os mais perigosos. Não querem resolver problemas e melhorar a vida dos eleitores despojados de poder. Querem gritar contra eles, provocar uma convulsão pública de ódio e cavalgar esse espasmo de raiva generalizada para cargos mais altos. Não surpreendentemente, poucos parecem responsabilizá-los. Pelo contrário, a imprensa do sistema acena com aprovação da justiça vigilante contra o crime de pobreza.

“Durante anos, antes de Jordan Neely ser morto no metrô de Nova York, a cidade estava de olho nele”, escreveu o New York Times em 13 de maio. “Estava em uma lista informalmente conhecida como top 50, uma lista de pessoas que se destacam pela gravidade dos seus problemas e a sua resistência em aceitar ajuda.” Assim, até a “folha de registo” desculpa o assassinato a sangue frio dos pobres não domiciliados. Sem dúvida, quando o próximo presidente fascista abrir caminho em campos de concentração para os culpados de penúria, esse mesmo veículo de notícias o desculpará, observando que os encarcerados eram uma ameaça à sociedade educada, que a polícia tinha os seus nomes numa lista e que, de qualquer modo, estamos melhor sem todos aqueles desagradáveis vagabundos sem-abrigo.  Que rico sistema econômico temos aqui. Retira a milhões de pessoas os meios de sobrevivência, depois culpa-as e pune-as pela sua espoliação. Se  se chama a isso civilização, precisamos repensar a nossa definição do termo.

*Eve Ottenberg é romancista e jornalista. Já publicou 25 romances e duas coleções de contos. Seu último livro é Roman Summer. Ela pode ser contatada em seu site.

Fonte: A pena de morte para os sem-abrigo – CounterPunch.org

Foto: Barracas de camping bloqueiam as calçadas da rua Seis, em Skid Row, no centro de Los Angeles. APU GOMES