Douglas Santos Alves oferece uma boa contribuição ao debate sobre o identitarismo, de uma perspectiva comprometida com a emancipação dos dominados.
Por Luis Felipe Miguel
A discussão sobre o chamado “identitarismo” é um verdadeiro campo minado – sobretudo para quem deseja tanto reconhecer a legitimidade e a importância das lutas de tantos grupos dominados quanto evitar a redução destas lutas à “identidade”.
Para quem deseja acompanhar o debate com honestidade, o livro de Douglas Santos Alves, Para além da identidade, é uma boa indicação. O autor é cientista político, professor da Universidade Federal da Fronteira Sul, e aborda o tema a partir de uma perspectiva que é marxista, mas livre de qualquer dogmatismo.
Não custa fazer a ressalva de sempre, que alguns tentam ignorar deliberadamente: construir a crítica às políticas de identidade não é negar a importância fundamental das lutas emancipatórias de grupos como as mulheres, a população negra e a comunidade LGBT.
É discutir os limites de um enquadramento destas lutas que acaba por promover uma acomodação com estruturas de dominação vigentes e, no final das contas, promover avanços que impactam muito pouco na vida da maior parte dos integrantes de cada um destes grupos. E abrir caminho para visões mais materialistas e historicamente informadas, que permitam combates mais efetivos.
O livro começa com uma revisão de algumas abordagens teóricas: a constituição dos sujeitos no capitalismo, segundo Marx, e a hegemonia na formulação de Gramsci, que embasam a posição do autor, mas também Foucault, a teoria queer e o desconstrucionismo, alvos de uma interpelação crítica, mas respeitosa.
Ele cresce, porém, na terceira parte, em que são discutidos os limites do identitarismo.
Sua crítica se dirige – corretamente, a meu ver – ao processo aparentemente paradoxal pelo qual as identidades são, a um só tempo, mobilizadas politicamente e despolitizadas em sua constituição.
É possível acompanhar esse processo em três dimensões simultâneas e sobrepostas:
1) As particularidades que determinam as identidades são transformadas em essências que definem os sujeitos.
2) As identidades deixam de ser percebidas como relacionais, isto é, como formadas pelas próprias relações sociais de dominação, e passam a transitar como pontos estáveis e prévios aos conflitos.
Como diz o autor: “O modo de fazer política desses novos grupamentos de oprimidos transforma as particularidades que os distinguem em uma nova essência, fixa, imutável e, acima de tudo, inegociável.”
3) A essencialização – ou o “corporativismo identitário”, na feliz expressão do autor – gera o risco de dar à identidade um caráter normativo, aprisionando os integrantes do grupo, levados a ostentar os marcadores identitários adequados sob pena de marginalização e exclusão.
Tenho muita concordância com isso, até porque sempre dediquei minha simpatia ao sonho de uma sociedade sem gênero, como em muito da tradição feminista, e color blind, como no antirracismo da tradição de Martin Luther King, isto é, em que sexo e cor da pele se tornassem irrelevantes para predizer como você vai se comportar, do que vai gostar, que posições vai ocupar.
Acho preocupante que (como fez, por exemplo, o colunista da Folha, Thiago Amparo, ao comentar o discurso de posse de Trump) o ideal de color blindness seja entregue de mão beijada à extrema-direita, como se significasse a oposição às políticas afirmativas de reparação aos oprimidos.
Ao mesmo tempo, Alves questiona a noção de um “livre mercado de identidades”, em que cada um escolheria aquela que deseja. Afinal, “acreditar que é possível escolher livremente quem se deseja ser significa aceitar, por caminhos diferentes, o mesmo erro do essencialismo, que é acreditar que a identidade não é determinada nas relações sociais”.
Essa identidade “livre” se afirmaria no mercado, em um processo pelo qual alguns conseguem adquirir individualmente o reconhecimento que é negado aos outros – em perfeita consonância com a competição neoliberal permanente que é a razão do capitalismo contemporâneo.
Diz o autor: “Essa perspectiva vem acompanhada do risco de se tratar o emprego formal, os direitos trabalhistas e demais conquistas do movimento operário como privilégio de uma classe trabalhadora masculina, branca e heterossexual. Em nenhum momento se questiona, nesse raciocínio, a posição confortável do capitalista, que está lucrando mais ao pagar menos para grupos oprimidos e, ao mesmo tempo, eliminar a solidariedade de classe necessária para qualquer resistência contra demissões, retirada de direitos ou rebaixamento de salários.”
Classe é uma categoria fundamental para analisar as estruturas de dominação presentes na sociedade. Quer queiram ou não, as visões identitárias que a negam, escamoteiam ou deixam em segundo plano estão fadadas a servir à reprodução do capitalismo.
Douglas Santos Alves – Para além da identidade: da resistência à política. São Paulo: Usina, 2022.