A escala 6×1 é um problema de saúde pública e uma violação de direitos básicos das crianças. Ela precisa acabar – e isso está ao nosso alcance
Por Daniel Becker
Solange é caixa em um pequeno mercado na zona norte do Rio de Janeiro. Mãe solo de dois filhos pequenos, ela acorda todos os dias às 4h30 para pegar dois ônibus até o trabalho. São quase duas horas de deslocamento na ida e outras duas na volta, muitas vezes em pé. Chega em casa por volta das 20h, exausta. As crianças ficaram com a avó e querem um mínimo de atenção, que ela mal tem energia para oferecer. Nunca vai ao médico ou ao dentista, não se exercita, come mal, dorme pouco. Sua única folga na semana é o domingo, dia de faxinar e lavar roupa. Em muitos feriados ela é convocada para trabalhar.
A escala 6×1 — seis dias de trabalho por apenas um de descanso — é uma prática comum no Brasil (mais da metade do comércio a utiliza). Profundamente injusta, ela impõe uma rotina exaustiva que sacrifica os trabalhadores, especialmente os mais pobres. 82% deles recebem menos de dois salários mínimos. Trata-se, na prática, de uma forma moderna de semi-escravidão, que sacrifica saúde, vínculos familiares, bem-estar e dignidade. Para as mulheres — que acumulam quase todo o trabalho em casa — a sobrecarga é ainda maior e agrava desigualdades históricas.
A ciência mostra que jornadas exaustivas de mais de 40 horas por semana e apenas um dia de descanso estão associadas a uma série de doenças: hipertensão, diabetes tipo 2, depressão, AVC, ansiedade e distúrbios do sono.
Na família, a escala 6×1 cria um muro invisível entre pais e filhos. Como construir vínculos profundos quando se convive tão pouco? Como acompanhar o crescimento, educar, transmitir valores, passear ou simplesmente curtir os filhos, se o tempo é mínimo, e o estresse e o cansaço são máximos? Os prejuízos para as crianças são inevitáveis: o vínculo precário vai causar perdas no desenvolvimento, dificuldades escolares, problemas de comportamento e danos à saúde física e mental.
Para as empresas também é um mau negócio. Trabalhadores sobrecarregados produzem menos, erram mais, faltam mais por adoecimento. O resultado é alta rotatividade, menor engajamento e clima organizacional tóxico. Empresas modernas e responsáveis têm buscado o contrário: políticas de bem-estar, redução de carga horária e mais flexibilidade. E têm colhido os frutos.
A experiência internacional mostra que é possível mudar. Em países como França, Alemanha, Holanda, Reino Unido e Islândia, estudos mostram que a redução da carga de trabalho resultou em melhores indicadores de saúde pública, satisfação dos funcionários, redução do estresse e ganhos de produtividade. Na América Latina, o Chile reduziu a jornada semanal de 45 para 40 horas, e a Colômbia está diminuindo gradualmente de 48 para 42 horas até 2026.
No Brasil, a ideia do fim da escala surgiu de um vídeo de desabafo nas redes sociais: Rick Azevedo, seu autor, criou o movimento “Pela Vida Além do Trabalho” (VAT) e acabou eleito vereador. A deputada federal Erika Hilton encampou a ideia e apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para alterar a jornada de trabalho.
Ela deverá ser votada ainda esse ano, e precisa ser antecedida por uma discussão ampla e cuidadosa. As pequenas empresas, por exemplo, sofrerão mais com a mudança e podem precisar de condições específicas para se adaptar [NR: no Senado tramita uma PEC so senador Paulo Paim-PT/RS que também reduz a jornada de trabalho progressivamente a 36 horas semanais e põe fim à escala 6×1].
O apoio em nosso país é maciço. Pesquisas mostram que 92 milhões dos brasileiros (57%) apoiam o fim da escala, e 65% (105 milhões) acreditam que melhoraria a oferta de empregos e a qualidade de vida no país.
A escala 6×1 é um problema de saúde pública e uma violação de direitos básicos das crianças. Defender o seu fim é proteger vínculos, oferecer oportunidades de lazer, promover saúde física e mental, fortalecer famílias e em última instância, melhorar o mundo do trabalho e sua produtividade. Ela precisa acabar – e isso está ao nosso alcance.
Fonte: vidaetrabalho