O Brasil consta como o último país do mundo a abolir a escravidão, o que em geral é considerado uma mancha vergonhosa da nossa história e fator explicativo do nosso relativo atraso. A verdade é que as classes dominantes em nosso país, em especial os latifundiários, ainda estão possuídas pelo espírito escravocrata e, por força do seu poder econômico e da notória influência no Congresso Nacional, continuam explorando impunemente a escravidão em sua versão contemporânea. Embora a prática configure um crime tipificado no artigo 149 do Código Penal, é no caso um crime sem o devido e merecido castigo, como mostra o artigo do jornalista João Ripper reproduzido abaixo:
Previsto na Constituição, confisco de terras por escravidão nunca foi aplicado
A Constituição determina expressamente, desde 2014, que donos de terras onde haja trabalho análogo à escravidão devem perder o imóvel sem direito a indenização. A ideia dessa regra é destinar estas áreas à reforma agrária ou programas de habitação popular, para fazer cumprir a função social da propriedade. Mais de dez anos depois, porém, isso ainda não é colocado em prática.
A expropriação de terras por uso de trabalho escravo passou a ser prevista no artigo 243 da Carta Magna por meio da Emenda Constitucional 81/14, que foi aprovada por ampla maioria na Congresso. Mas um levantamento da revista eletrônica Consultor Jurídico, analisado em conjunto com estudos acadêmicos, aponta que raríssimas decisões judiciais determinaram esse confisco, e nenhuma delas chegou a ser efetivada.
Atualmente existem duas possibilidades de expropriação de um imóvel: se ele é usado para exploração de trabalho escravo ou cultivo de plantas psicotrópicas, como a maconha. No caso do plantio de drogas, o confisco é previsto desde a redação original da Constituição, em 1988, e está regulamentado por uma lei federal de 1991 e um decreto de 1992. Para o confisco por escravidão, contudo, não há um ordenamento legal até o momento.
Carência de legislação específica
A falta de uma legislação específica dificulta a efetivação dessas expropriações, porque a Constituição não detalha como ela deve ocorrer. Segundo o artigo 243, deve-se confiscar as terras onde houver “exploração de trabalho escravo na forma da lei”, mas não fica claro se isso dependeria de uma sentença criminal transitada em julgado, por exemplo. Alguns especialistas defendem que seria possível usar, por analogia, a lei e o decreto que estabelecem as regras para a expropriação em caso de plantio de drogas.
“O trabalho análogo à escravidão está descrito no Código Penal. E nós já temos uma lei específica para a expropriação de terras, embora ela trate da hipótese de plantio de drogas. Independentemente de qual é o motivo do confisco, o procedimento pode ser o mesmo, por isso entendo que a aplicação do artigo 243 pode ser feita com base nas leis que já existem”, sustenta a advogada Lívia Miraglia, doutora em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Outros especialistas avaliam, contudo, que há dificuldades em fazer essa equivalência. “Em tese, poderíamos usar a mesma lei por analogia, porque o rito da expropriação seria similar ao do plantio de drogas. O problema é que a exploração de trabalho escravo é mais difícil de comprovar”, explica Larissa Ferreira Porto, mestra pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP), que escreveu um artigo específico sobre o tema.
“No caso do plantio de drogas, basta que a fiscalização chegue ao local, tire uma amostra e faça uma perícia. O problema de ’emprestar’ essa mesma legislação para a esfera trabalhista é que a comprovação da exploração de mão-de-obra depende de mais variáveis”, avalia a pesquisadora.
Para Miraglia, coordenadora da clínica de combate ao trabalho escravo da UFMG — que faz pesquisas na área e dá assessoria jurídica às vítimas —, o confisco de terras representaria uma das poucas punições efetivas a condenados pela prática.
“Os empregadores hoje têm mais medo da sanção econômica e da repercussão midiática, porque a penalização é baixíssima. A expropriação de terras me parece um caminho necessário pra gente poder, de fato, erradicar o trabalho escravo do Brasil”, afirma.
Empecilhos legais
O estudo “Raio-x das ações judiciais de trabalho escravo“, feito em parceria entre a UFMG e o governo federal, não encontrou nenhum caso de expropriação efetivada entre centenas de processos criminais analisados entre 2008 e 2019. A mesma conclusão foi alcançada por um artigo publicado na Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, de 2019; por um artigo publicado na Revista de Direito Brasileira, em 2020; e pelo trabalho de Larissa Porto, datado de 2021.
A ConJur analisou 50 ações recentes da Justiça Federal, a partir de 2023, que envolveram o crime de redução a condição análoga à de escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal. Apenas uma sentença em primeiro grau, que envolveu uma empregada doméstica em Salvador, resultou na expropriação da casa onde ela trabalhava para um casal. Na segunda instância, porém, os réus acabaram absolvidos e a decisão foi revertida.
Em outro processo, na Justiça do Trabalho, um empresário foi expropriado e condenado a pagar indenização por dano moral coletivo de R$ 1 milhão a funcionários que, segundo a sentença, foram submetidos a uma série de abusos. O Tribunal Superior do Trabalho, porém, derrubou a decisão de expropriação alegando que a norma do artigo 243 da Constituição tem eficácia limitada.
“De início, não estamos diante de trabalho escravo. Como visto alhures, trabalho escravo é diverso de trabalho em condições análogas à de escravo. E o caso se refere à segunda hipótese. E ainda que assim não fosse, filio-me à corrente de que o preceito constitucional em questão é norma de eficácia limitada, dependendo de lei que a regulamente”, afirmou a desembargadora Sônia Maria Forster do Amaral, relatora do caso.
Bola com o Supremo
A Procuradoria-geral da República ajuizou no Supremo Tribunal Federal, em 2022, uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão para que o STF estabeleça um prazo para que o Congresso edite uma lei com regras para a expropriação por trabalho escravo. Até que isso ocorra, a PGR defende que o Judiciário possa usar, por analogia, as leis que regulamentam o confisco em caso de plantio de drogas.
Conforme mostrou a ConJur, essa é uma entre 12 ADOs que alegam omissões do Congresso em regulamentar questões constitucionais e ainda dependem de decisão do Supremo. A lista também inclui temas como o imposto sobre grandes fortunas (artigo 153, inciso VII, da Constituição) e o crime de negar ou impedir emprego em empresa privada em razão da raça ou cor (artigo 5º, inciso XLII).
No caso da ADO 77, que pede uma lei para o confisco de terras por escravidão, o Supremo ainda não julgou o caso. A Corte, no entanto, já rejeitou uma ação semelhante: o Mandado de Injunção 7.440, ajuizado pela Defensoria Pública da União. Nesse caso, o STF julgou a ação improcedente por considerar que ele não era o instrumento adequado para aquele pedido.