Salvar o fogo da chama que arde e nunca vai se apagar

Por Marcos Aurélio Ruy

 O novo livro de Itamar Vieira Junior, Salvar o Fogo (2024), também premiado com o Prêmio Jabuti de literatura, além de significar a segunda história da trilogia iniciada, em 2019, com Torto Arado – que se completa com o próximo lançamento, segundo palavras do próprio autor –, mantém a vida da parcela da população brasileira mais marginalizada em toda a história do país.

 “Eu penso que ‘Salvar o Fogo’ é a segunda parte de uma trilogia, a trilogia da terra. E, o Rio Paraguaçu, ele é tributário dos dois rios que aparecem lá em ‘Torto Arado’. Então, esses dois rios deságuam no Paraguaçu. O Paraguaçu vem para o Recôncavo, e deságua na Baía de Todos os Santos. Eu acho que esse percurso já dá uma deixa para o leitor do que pode estar por vir”, disse Itamar ao Fantástico da Globo.

 Mantém também, como em seu primeiro romance, a questão da luta pela posse da terra em um país com grande aglomeração de terras em poucas mãos ainda hoje; é o centro da trama que revela a crueldade da elite brasileira através da história. Parte dessa elite mantém a mentalidade escravista e prefere se aliar a organizações criminosas a ceder um palmo sequer para as pessoas que vivem do trabalho.

 E ainda mantém a capacidade de criar personagens marcantes, destinadas a marcar a história da literatura brasileira. Neste romance, Luzia e Mariinha, depois Maria Cabocla e Moisés, filho da Luzia – fruto de um estupro, criado como irmão dela, para evitar a maledicência da vizinhança –, reúnem a força do povo que vive de vender a força de trabalho, explorada à exacerbação por um capital cada vez mais destruidor de vidas e sonhos.

 Deixa latente a estratégia do capital de erradicar as crenças populares, de magia e de fé, para impor uma religião que prega a limitação humana dos seus dogmas. Assim, na aldeia afro-indígena Tapera, às margens do rio Paraguaçu, a ideologia do medo se impõe para impedir a revolta dos populares contra a dominação eclesiástica.

 A religião entra como fator de dominação e não de libertação como acontece, e muito, no mundo contemporâneo, onde a religião é usada para impedir seres humanos de buscarem o pensamento livre e a liberdade de expressão e de viver como se deseja, essencialmente os setores fundamentalistas, calcados no ódio e na violência como forma de dominação e extermínio da contestação.

 Mas salvar que fogo? O fogo que matou Mundinho, o pai da família, que se recusava a pagar os impostos para a igreja? A marca de fogo no vestido da pequena Edite, “desaparecida” misteriosamente? O fogo que destrói lavouras, florestas, aldeias indígenas, acampamentos de sem-terra? O fogo de que queimou “bruxas” na Idade Média como forma de impor às mulheres o limite doméstico como pertencimento, com bem afirma Silvia Federici?

 Ou salvar o fogo das chama das ideias de transformação no mundo em um lugar bom de se viver para todas as pessoas? O fogo que arde sem se ver, como diria Luís de Camões, a chama que nunca nada vai apagar como canta Guilherme Arantes. O fogo da alma de quem ousa sonhar e viver.

 Dentre os três livros que sinto vontade de ver adaptados para as telonas dos cinema, dois são de Itamar Vieira Junior: Torto Arado e Salvar o Fogo e o outro de Chico Buarque: Leite Derramado. Uma dica aos cineastas que estão fazendo o cinema brasileiro brilhar.

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