A crise hídrica volta a assombrar São Paulo em 2025 — mas agora sob um cenário ainda mais grave: pela primeira vez, o abastecimento da maior metrópole do país é administrado por uma empresa privatizada. Com reservatórios no menor nível em quase uma década, denúncias de serviço deteriorado e regulação fragilizada, especialistas afirmam que a privatização da Sabesp “institucionaliza a falta d’água” e coloca em risco a segurança hídrica de milhões de pessoas.
O Sistema Integrado Metropolitano opera hoje com cerca de 27% de sua capacidade, o pior índice desde 2016. Já o Cantareira, historicamente central para o abastecimento da Grande São Paulo, registra pouco mais de 22% — também o nível mais baixo desde fevereiro daquele ano. Paralelamente, cresce o número de bairros que enfrentam redução de pressão à noite e interrupções frequentes no fornecimento.
A Sabesp foi entregue à iniciativa privada em julho de 2024 pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). A concessão rendeu R$ 14,7 bilhões ao Estado e entregou o comando da companhia à Equatorial, que se tornou acionista de referência. Pouco mais de um ano depois, os sinais de desgaste se acumulam.
“O que está sendo posto é institucionalizar a falta de água”
Para Amauri Pollachi, ex-diretor da Sabesp e conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e Saneamento (Ondas), não há qualquer aspecto positivo resultante da privatização até agora — pelo contrário.
“O foco é gerar o máximo possível de lucro, extrair o máximo possível de dividendo”, afirma. Segundo ele, para garantir lucratividade aos acionistas, a empresa passou a priorizar cortes de custos, redução de pressão da rede e o aumento de retiradas dos reservatórios, em vez de medidas que incentivem o consumo consciente.
Durante a crise de 2014/2015, a Sabesp pública utilizou bônus de redução de consumo que tiveram adesão de 86% da população. Hoje, a mesma estratégia foi descartada pela gestão privatizada, justamente por reduzir receita: “Se o consumidor economiza, diminui o lucro, e isso não interessa aos acionistas”, diz Pollachi.
Série de denúncias e piora na qualidade do serviço
Nos últimos meses, multiplicaram-se queixas sobre:
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infiltração de esgoto na rede de abastecimento;
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lançamento de esgoto in natura nos rios Tietê e Pinheiros;
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falhas operacionais em elevatórias;
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despejo de esgoto nos reservatórios Guarapiranga e Billings;
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obras mal executadas em ligações de água em comunidades.
Ao mesmo tempo, a empresa lançou sucessivos Programas de Demissão Incentivada, reduzindo seu quadro de cerca de 12 mil funcionários para cerca de 6 mil — perda significativa de profissionais experientes e aumento da vulnerabilidade operacional.
Retirada de água nos reservatórios aumenta sem explicação técnica
Dados do Instituto Água e Saneamento (IAS) mostram que a Sabesp aumentou a retirada do Sistema Metropolitano de 59 m³/s, em 2016, para 72 m³/s em 2025 — uma elevação de 10% nos últimos dois anos. Para Pollachi, o salto não se justifica pelo crescimento populacional:
“Nada explica esse crescimento. A explicação possível é o incentivo ao consumo e o aumento das perdas por falta de investimentos.”
Esse comportamento, associado ao período seco e ao baixo volume das represas, acelera a queda dos níveis e aprofunda o risco de desabastecimento.
Regulação fragilizada e riscos futuros
Outro ponto crítico, segundo Pollachi, é o esvaziamento da Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado), que perdeu atribuições essenciais. A privatização criou duas novas entidades — uma empresa verificadora e outra avaliadora — ambas contratadas pela própria Sabesp privatizada, modelo que compromete transparência e fiscalização.
Além disso, o contrato prevê uma “moratória tarifária” até as eleições de 2026. Após esse período, o especialista afirma que deve ocorrer “uma paulada” nas contas de água em 2027.
Experiências negativas se repetem no Brasil e no mundo
Pollachi lembra que essa não é a primeira vez que a gestão privada fracassa no abastecimento:
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Itu (SP) enfrentou colapso hídrico em 2014/2015 sob administração de concessionária privada, resultando na cassação da concessão.
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No exterior, centenas de cidades já reverteram privatizações devido a tarifas altas, descumprimento de metas, falta de transparência e piora dos serviços.
O especialista acredita que São Paulo seguirá o mesmo caminho:
“Daqui algum tempo, com crises hídricas, incapacidade de investimento, tarifas elevadas e falta de transparência, haverá um movimento de reestatização. Não será simples, mas será inevitável.”
Privatização transformou direito básico em ativo financeiro
A análise de Pollachi aponta para um problema estrutural: o saneamento, antes tratado como política pública essencial, passa a ser visto como produto financeiro.
“Hoje, o foco não é levar saúde à população, mas gerar lucro e dividendo”, resume. Para ele, a privatização da Sabesp teve fundamento ideológico e atendeu, sobretudo, aos interesses do mercado financeiro.
São Paulo revive o fantasma da seca — agora sem proteção pública
Com reservatórios baixos, retirada elevada, redução de pressão, perda de profissionais experientes e regulação fragilizada, o modelo privatizado abre espaço para um cenário de insegurança hídrica permanente.
Se a estação chuvosa permanecer abaixo da média, São Paulo pode enfrentar em 2025 uma crise ainda mais grave do que a de 2014 — mas sem o arcabouço público que, na época, permitiu medidas emergenciais eficazes.
A política adotada pela gestão privatizada, adverte Pollachi, está “institucionalizando a falta d’água” e transformando o que deveria ser um serviço público essencial em instrumento de lucro privado, com impactos profundos para a população paulista.


