Construção civil: Os canteiros da ira

Março assistiu ao levante dos trabalhadores da construção civil em um conjunto de obras em vários estados. As greves envolveram 80 mil operários e sinalizam, a patrões que teimam em repetir formas de opressão típicas do “Brasil Grande” da época da ditadura militar, que o país mudou e os trabalhadores não aceitam mais maus-tratos, atrasos e faltas de pagamento, e exigem condições dignas de trabalho e renda.

A volta do crescimento econômico, que vai transformando o Brasil em um canteiro de obras, criou uma situação paradoxal. Há um ritmo de “Brasil Grande”, semelhante ao vivido pelo país na década de 1970, nos tempos do milagre econômico.

Numa das pontas, o papel do governo, como naqueles anos, é o de fomentar o crescimento, e os governos Lula e Dilma não fogem desta responsabilidade, embora sua ação os diferencie claramente do autoritarismo do período militar.

Na outra, os empresários parecem dispostos a repetir as mesmas formas de opressão e exploração capitalistas que praticaram durante a ditadura militar.

Este é o paradoxo: sob um governo das forças democráticas e progressistas, empresários persistem no atraso e repetem um comportamento patronal ultrapassado e condenado pelos brasileiros. E o governo só acorda para as contradições depois que elas explodem na forma de motins, como ocorreu em março, nos canteiros das maiores obras públicas em andamento no Brasil. Conflitos que degeneraram em destruição de alojamentos, veículos e mesmo canteiros de obras. A pauta de 11 reivindicações dos trabalhadores da Usina São Domingos, no Mato Grosso do Sul, descreve quase que um roteiro da exploração patronal e da revolta contra ela. Ali são alinhadas reclamações comuns em todos aqueles protestos: baixos salários, descontos indevidos, não pagamento de horas extras, agressões cometidas por seguranças da empresa contra os trabalhadores, péssimas condições do alojamento e refeitório, dificuldade para visita às famílias no caso de trabalhadores de outros estados, obstáculos à livre movimentação dos operários nos períodos de folga, retenção de carteiras profissionais quando pedem demissão, e por aí vai.

No total, os protestos ocorridos desde a segunda quinzena de março paralisaram cerca de 80 mil trabalhadores.

Explosão em Jirau

No dia 15 de março, três motoristas de ônibus a serviço da construtora Camargo Corrêa agrediram um operário da construção da hidrelétrica de Jirau, em Rondônia. Foi o estopim do conflito que se generalizou, resultando no incêndio, no dia 18, de veículos, alojamentos e destruição de um dos canteiros das obras.

Naquela obra trabalhavam, no momento dos protestos, cerca de 22 mil trabalhadores, dos quais apenas um terço é de Rondônia, e os demais de outros estados. O motivo da agressão contra o trabalhador, no dia 15, foi sua insistência em tomar um ônibus para viajar até a capital de Rondônia, Porto Velho, a 130 quilômetros da obra. Ele não tinha autorização da empresa para viajar, mas queria ir mesmo assim, num período de folga.

Foi a gota d’água de um clima de insatisfação e tensão antigo e crescente. A proibição de deslocamentos como esse é uma das queixas mais gerais entre os trabalhadores. Mas não é a única, e as outras são tão graves quanto ela. O vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil do Estado de Rondônia, Altair Donizete, acusa a empreiteira de não pagar a participação nos lucros ou resultados (PLR) referente a 2010, de cortar o pagamento de horas extras trabalhadas, de violência física contra os empregados promovida por funcionários da Camargo Corrêa, ocorrência de vencimento de “baixadas” (folgas a que os trabalhadores tem direito de quatro em quatro meses) e cobrança de preços extorsivos nos produtos vendidos aos trabalhadores pela empresa. Outras reivindicações são o aumento do valor da cesta básica e do vale-refeição, e convênios médicos.

No dia 18, houve greve também na outra usina em construção no rio Madeira, a de Santo Antônio, onde predominam trabalhadores moradores em Rondônia (80% do total), sendo pequeno o número daqueles que vieram de outros estados. Eles protestavam pelos mesmos motivos que seus colegas de Jirau, embora a radicalidade do movimento tenha sido menor.

Quando o Ministério Público do Trabalho conseguiu reunir-se com representantes da empresa e dos trabalhadores, no dia 20, ficou acertada a assinatura de um termo de ajuste de conduta (TAC) com a empresa responsável pela construção da usina, com o objetivo de assegurar o cumprimento dos direitos trabalhistas e o pagamento integral de salários a todos os funcionários, inclusive os terceirizados (contratados quase sempre por “gatos”), no período em que a obra ficar paralisada. Os trabalhadores exigem também que as medidas trabalhistas que resultarem da negociação sejam aplicadas igualmente pelas empresas terceirizadas.

O acordo foi fechado no dia 7 de abril; a empresa acatou as reivindicações dos operários, que terão aumento salarial de 5% e a cesta básica vai passar de R$ 110 para R$ 132; licença de cinco dias – a cada três meses – com passagem de avião até as capitais de seus estados – e pagamento de 50 horas extras para os trabalhadores que permanecerem no canteiro de obras.

Balas de borracha em São Domingos

Em Água Clara (MS), onde está sendo construída a Usina Hidrelétrica São Domingos, os trabalhadores se revoltaram em 24 de março. O estopim foi a agressão de agentes de segurança da empresa responsável pela obra (o consórcio formado pelas construtoras Engevix e Galvão) a um grupo de trabalhadores, contra os quais foram usadas balas de borracha e bombas de efeito moral, agravando a tensão. No final, restaram destruídos e incendiados o alojamento de mil trabalhadores, o refeitório, lavanderia, escritórios, carros, o centro ecumênico e parte do canteiro de obras.

O motivo do protesto dos trabalhadores foi o atraso no pagamento do salário do mês anterior, além de inúmeras queixas contra maus-tratos pela segurança, trabalho não remunerado e condições subumanas de alojamento e alimentação. As reclamações começaram no início de março e aqueles que pediram demissão não foram atendidos e tiveram as carteiras profissionais confiscadas para forçá-los a continuar na obra.

Tortura

No dia 29, cinco trabalhadores que a Polícia Militar acusou de participar dos incêndios denunciaram terem sido torturados para confessar aquela participação. Eles só foram soltos depois da intervenção do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Pesada de Mato Grosso do Sul, e acusaram os policiais de os prenderem aleatoriamente no dia do protesto. Um deles, Franklan Ferreira dos Santos, 34 anos acusou a polícia de “chegar depois que tudo pegava fogo e nos pegaram em meio às pessoas como se fossemos culpados. Eles queriam culpar e nos pegaram aleatoriamente”. Ele tinha hematomas nas costas, braços e peito, provocados pelo espancamento a que foi submetido. Os policiais inclusive apontaram armas contra suas cabeças, na delegacia de Água Clara, obrigando-os a assinar “vários papéis, vários documentos que nem sabemos do que tratavam”, conta outro operário, Joel Carvalho, que está com problema de audição no ouvido direito em consequência da agressão com o cano de um revólver. Todos foram levados para a capital do estado, Campo Grande, para fazer exames de corpo de delito.

Vitória dos trabalhadores

Uma semana depois do levante, o consórcio acatou, no dia 31, as reivindicações dos trabalhadores. Entre outras decisões, demitiu a empresa responsável pela segurança nas obras. Reconheceu também a ocorrência de atraso no pagamento e de retenção de carteiras profissionais e se comprometeu a pagar os atrasados até 5 de abril. Aceitou também pagar 30 horas para todos os contratados até o dia 15 de fevereiro, além de acatar a pauta de 11 reivindicações apresentadas pelos trabalhadores. Mesmo assim, metade dos trabalhadores resolveu pedir demissão e voltar para casa.

Greve de 35 mil em Suape

Em Ipojuca (PE), onde estão sendo construídas a Refinaria Abreu e Lima e fábricas da Petroquímica Suape, o protesto operário que eclodiu no dia 17 de março vinha sendo gestado há alguns meses. No ano passado, houve paralisações que o presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores na Construção Pesada, Wilmar Santos, considerou “inexpressivas”. Em fevereiro, um trabalhador foi baleado por um segurança em uma assembleia e o caldo entornou. Um alojamento foi incendiado e a greve recomeçou, envolvendo os cinco mil trabalhadores do consórcio formado pelas construtoras Odebrecht e OAS.

Os patrões foram à Justiça contra a greve e, na primeira audiência, o Ministério Público do Trabalho aconselhou a negociação. A greve foi suspensa por um mês, sem resultados. Os trabalhadores apresentaram uma pauta com 13 reivindicações, mas houve impasse em relação às duas principais: o valor das horas extras aos sábados e a cesta básica. Os trabalhadores queriam 100% de acréscimo nas horas extras e uma cesta básica de 160 reais; os patrões ofereciam 80% de acréscimo e 130 reais.

Em 17 de março, a greve foi retomada, agora com a adesão dos trabalhadores da Petroquímica Suape, e o total dos paralisados chegou a 35 mil trabalhadores. Quando o movimento foi a julgamento, a Justiça do Trabalho atendeu ao pedido dos patrões e, em 29 de março, o Tribunal Regional do Trabalho de Pernambuco declarou a ilegalidade da greve, embora tenha acatado a reivindicação de pagamento de 100% sobre as horas extras e cesta básica de 160 reais. Com isso, os trabalhadores aprovaram o encerramento da greve em assembleia realizada no dia 30, com uma pendência: o pagamento dos dias parados. A reivindicação dos trabalhadores, que os patrões não aceitam, é o pagamento. A decisão da Justiça do Trabalho deixou uma porta aberta para a negociação.

Greve na obra de Eike Batista

Cerca de mil dos 1,2 mil trabalhadores do Porto do Açu, em São João da Barra (Rio de Janeiro) entraram em greve em 30 de março por melhores salários e condições de trabalho. Queriam 30% de adicional de insalubridade, participação nos lucros e resultados, seguro de vida e melhorias no alojamento e protestavam contra as péssimas condições de trabalho.

A greve foi rápida e terminou no dia seguinte após acordo entre os trabalhadores, a LLX – braço logístico do grupo dirigido pelo empresário Eike Batista – e a ARG, construtora responsável por parte da obra. As reivindicações dos trabalhadores foram atendidas. A principal delas era o pagamento de uma defasagem do reajuste salarial que vinha desde o início de 2010, quando o acordo determinou um aumento de 10%, mas somente 7,5% foram repassados aos trabalhadores. Agora, a diferença será paga em 45 dias. Haverá também a equiparação salarial com os trabalhadores do Porto Sudeste, outro empreendimento do grupo situado em Itaguaí (RJ). A cesta básica vai passar de 65 reais para 120 reais, será adotado um plano de saúde e as horas gastas no deslocamento entre casa e trabalho serão contabilizadas no expediente.

Protestos no Ceará e no Maranhão

Outras obras onde eles ocorreram incluem as obras de transposição do rio São Francisco e de construção da ferrovia Transnordestina, no Ceará, onde houve ainda uma greve, iniciada em 14 de março, nas obras da termelétrica de Pecém, por melhoria nas áreas de lazer e a troca dos banheiros químicos.

Liga para o meu celular!

O sindicalista João Carlos Gonçalves, “Juruna”, secretário-geral da Força Sindical, que participou das negociações e das assembleias de trabalhadores no complexo de Suape, em Pernambuco, ficou surpreso com a modernidade que encontrou por lá. Muitos trabalhadores fotografavam e gravavam em seus celulares assembleias e conversas com dirigentes sindicais que, depois, enviavam para casa (muitas vezes em outros estados) e faziam circular também entre os próprios envolvidos nas negociações, como um penhor dos compromissos firmados.

Os próprios representantes patronais se surpreenderam: o uso de celulares, fax, redes sociais da internet, etc., permitiu que os negociadores sindicais tivessem, quase sempre, informações mais atualizadas, revelando o uso desses modernos recursos tecnológicos não só para a comunicação com amigos e familiares mas também como instrumento de mobilização na luta contra a opressão patronal.

A ação do governo

Se os empresários parecem decididos a repetir atitudes da época do “Brasil Grande”, sob a ditadura militar, a ação do governo Dilma Rousseff foi oposta à que era costumeira um quarto de século atrás e não aceitou amparar a pressão dos patrões contra os trabalhadores e o descumprimento da legislação trabalhista.

Dilma Rousseff chamou para si o tratamento da questão e escalou o ministro Gilberto Carvalho, secretário-geral da Presidência da República, para acompanhar o assunto. A intervenção do ministro foi rápida. Em 29 de março, ele defendeu a diminuição do número de trabalhadores na usina de Jirau, que havia sido decidida pela empreiteira para acelerar a entrega da obra. O acúmulo desordenado de trabalhadores foi um dos fatores que levaram à revolta, pensa o ministro. Ele havia participado de uma reunião com representantes das centrais sindicais e das grandes construtoras e, segundo um dos participantes, deu um “puxão de orelhas” nos patrões. “Em obra boa não tem greve”, disse, lembrando aos empresários seu passado de sindicalista. Ele quer repetir, na construção civil, o acordo feito pelo governo em 2009 com os plantadores de cana de açúcar, para eliminar o trabalho excessivo e degradante nas obras públicas em todo o país.


José Carlos Ruy é jornalista

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