Domingo foi um ato de revolta que não pode ser ignorado

A nossa democracia representativa perdeu legitimidade neste domingo.

Três meses adentro do novo governo, democraticamente eleito, diplomado pelas vias legais, presenciamos centenas de milhares de pessoas na Paulista exigindo todo tipo de coisa: o impeachment, a renúncia, o fim dos partidos políticos, o “fim da corrupção”, a cassação de uma ou outra figura, até mesmo (em pequenos números) o retorno de um regime militar ou a instalação de regimes fascistas. Teve suástica na Paulista. Teve jornalista hostilizado. Teve gente chutando cachorro porque tava com lenço vermelho. Teve gente enforcando bonecos da presidenta na ponte. Teve gente queimando sede do PT. E teve gente que saiu às ruas só para pedir um país melhor, na maior parte.

Os motivos que levaram essas pessoas para fora de casa importam menos do que a insatisfação que elas representam. Houve pouca educação política nas ruas, mas isso é irrelevante: o poder que emana do povo afeta o funcionamento do governo diretamente, seja ele caótico ou arrazoado. O sentimento geral, de que a corrupção e o distanciamento entre pessoas e políticos esta maior do que nunca, não pode deixar de ser ouvido porque tem seus motivos para existir.

Há realidades duras que o Brasil precisa encarar, e cujas implicações nem sempre serão fáceis de resolver. Não conseguimos, em 30 anos, implementar uma Reforma Política de fato, nem a Reforma Agrária, nem a Reforma Tributária, nem uma Regulação da Mídia bem equilibrada. Arrastamos as reformas dos Códigos Penal e Civil com a barriga, sem falar na própria reforma do Judiciário, e não houve uma atualização bem-intencionada da CLT. O predomínio do poder econômico, em todos esses casos, impediu que o nosso Congresso avançasse sobre qualquer um desses temas.

O mais grave erro de todos foi o fracasso dos governos, tanto pela esquerda quanto pela direita, de implementar a Reforma Política, “a mãe de todas as reformas”. A insatisfação se dá por este motivo: não conseguimos criar um sistema em que o jogo político não dependa da desonestidade para funcionar. Como esta hoje, a política brasileira é viável apenas pelas vias condenáveis: caixa dois, supervalorização de obras e serviços, financiamento privado, lobby religioso, tráfico financeiro para paraísos fiscais, lavagem de dinheiro, relações com o crime organizado e com o capital financeiro (igualmente danosos), etc. Essas práticas não são apenas atalhos para a vitória na vida política, são PRÉ-REQUISITOS dela. São todas heranças da ditadura das quais não conseguimos nos livrar até hoje, e que o tabuleiro do poder joga no colo de qualquer lado do espectro.

A razão dos protestos é questionável? Absolutamente. Mas o sentimento não. Conforme o público brasileiro começa a se acostumar com os direitos civis de uma democracia, os absurdos estabelecidos num passado esquecido começam a incomodar. 95% da população é incapaz de discutir, hoje, sobre a Reforma Política – falta leitura, falta senso crítico, falta contato com as lideranças. Às vezes, falta humanidade. Por outro lado, os mesmos 95% são capazes de dizer que existe algo terrivelmente errado com o governo. E eles estão certos, porque faltou às lideranças de todos os matizes a competência para expurgar os fantasmas de um passado político corrupto. Em troca do progresso possível, sacrificamos coletivamente nossos valores. A direita rendeu-se ao mercado financeiro e à religião, a esquerda ao fisiologismo. Há quem diga que valeu a pena (eu digo), há quem diga que não.

O Brasil evoluiu muito desde 1988. Nossa educação e nossa saúde passaram por transformações positivas profundas, nossos mecanismos de governança se atualizaram e nos deram a possibilidade de melhorar dramaticamente a vida das pessoas e aumentar nossa importância geopolítica. Falta agora o salto final do desenvolvimento da nossa democracia, que é purificar o sistema político. Todas as outras reformas sairão desse ato de coragem.

O que assusta neste processo é que este mesmo momento político pode ter três finais muito diferentes, dos quais dois são TERRÍVEIS. No melhor dos casos, chamamos uma Constituinte para reformar o sistema político – direita e esquerda se unem contra o centro, criam regras que coloquem ideologia e programa de governo acima de cargos e salários. O segundo caso é aquele tipicamente brasileiro, em que muda-se tudo para não mudarmos nada – seria uma oportunidade perdida que precisaríamos esperar mais 30 anos para reviver. O último caso é repetirmos o que aconteceu em 1964: por medo e por manipulação da imprensa, transformarmos o salto da democracia em degrau para um regime sanguinolento.

Eu não acredito que as pessoas que estavam na rua no domingo entendem essa situação. E não acredito, acima disso, que interessa aos detentores dos meios de comunicação e do alto capital explicar a escolha que temos diante de nós. Sem educação política, nos resta confiar no bom senso e na cidadania que conseguimos fomentar nesses 30 anos. Estou com medo de escolhermos o final errado para este filme.

Renato Bazan é produtor executivo da Secretaria de Comunicação nacional da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB)

 


 

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