Bolívia: socialismo será construído pelo povo, diz Vice de Evo

Formado em sociologia e matemática, oriundo da classe média boliviana e membro do mesmo partido político (o MAS) do presidente Evo Morales, Linera fala na entrevista sobre o atual estado de espírito da elite do país, do processo de aproximação dos movimentos indígenas e defende a idéia de que a liderança exercida por Evo serve de exemplo para todos os que lutam por um mundo mais justo.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista:

Como o senhor explica que sendo branco, de classe média e intelectual tenha se envolvido num projeto de raiz popular e indígena?
Cresci numa sociedade "pigmentocrática", na qual a cor da pele dá visibilidade à estrutura de classes da sociedade, a distribuição do poder econômico e político. É um modelo que se consolidou durante décadas, séculos, uma percepção da distribuição de funções das pessoas: os indígenas para o trabalho no campo, artesãos, serventes; os de pele um pouco mais mesclada ficam em funções intermediárias, de âmbito intelectual; as pessoas mais brancas são as donas do poder, do controle, do domínio social.

Como lhe influenciou as históricas reivindicações indígenas?
Não apenas no meu caso, mas também no de um núcleo de pessoas de classe média convocada por esse despertar indígena e popular, que irrompeu na cena política e se expande, se apresenta não-somente como um demandador de igualdade, mas também como um propositor de uma sociedade mais equilibrada e justa para a imensa maioria dos bolivianos.

Que opinião têm de vocês as elites do país?
Não nos perdoam. Pensam que somos traidores de classe por lutar a favor dos pobres. As classes altas não podem conceber que se fale da igualdade das pessoas, que se combata o neocolonialismo, as diferenciações e o modo de exercer o poder a partir da cor de pele das pessoas.

O atual governo, com seu processo de mudanças, conseguiu romper essa percepção racista da sociedade?
É mais fácil introduzir mudanças na estrutura econômica e favorecer a amplos setores, como temos feito, mediante políticas sociais de amplo consenso popular, do que transformar as estruturas mentais herdadas do passado. É um fardo pesado a estrutura de classes do país, que foi sendo mantida ao longo de nossa história, independentemente da fundação da República, da Revolução de 1952 ou algum outro fato. Essa estrutura persiste e se reflete até hoje em muitos dos hábitos de toda a população. Essa é a história do nosso país. Evidentemente, a luta dos povos indígenas e dos setores populares se encaminha para transformar esse estado de coisas e conseguir novas formas de comportamento cotidiano.

De que maneira a classe média foi se articulando para essa luta?
Eu creio que em 2000 a chamada Guerra da Água, em Cochabamba, foi um momento de definição. Ali participaram os movimentos campesino, cocaleiro, indígena e fabril para evitar a privatização de um bem de primeira necessidade. Logo vieram as sublevações aqui no altiplano, e daí por diante foi visível a construção de uma liderança política, intelectual, moral e indígena. Cada vez foram mais numerosos os setores identificados com a demanda indígena. Isso leva à vitória nas urnas do companheiro Evo Morales em 2005, no qual triunfaram os movimentos populares e indígenas, com o apoio de importantes setores de classe média, inclusive de alguns setores ricos e democráticos, que se sentem atraídos, convocados por esse projeto de igualdade.
 
Como você conheceu Evo Morales?
Conheci Evo em 2000, durante a Guerra da Água. Lá fazíamos trabalhos acadêmicos, um livro sobre o mundo fabril alertando contra o enfraquecimento das organizações de trabalhadores levada a cabo pelo sistema neoliberal.

Ele o escolheu como candidato a vice-presidente?
Eu me lembro que fazíamos reuniões permanentes com o companheiro Evo a respeito de política, que se intensificaram mais em 2002, quando o expulsaram do Parlamento. Em 2005, quando sua candidatura estava sendo articulada novamente, lembramos que a candidatura de Evo deveria ser acompanhada de um vice que contribuísse para articular outros setores sociais do país, principalmente da classe média. Listamos nomes. Faltando um mês para o início da campanha, o companheiro Evo veio a mim e me disse: "Álvaro, temos um problema. Não conseguimos encontrar o candidato, alguém de classe média, empresário progressista ou alguém do Oriente. O que ocorre é que alguns cumprem apenas uma parte dos requisitos". Então ele me disse: "Alguns companheiros crêem que você pode ser um bom candidato". Respondi: "Nem pensar, companheiro, temos que procurar. Vamos continuar buscando. Se tudo falhar e não sobrar ninguém mais, evidentemente que vou fazer aquilo que me mandem e o que se decida coletivamente".

Fala-se no país que o senhor, assim como outros membros do governo, representa o magnata norte-americano George Soros no gabinete presidencial. Que o senhor aposta na conversão da Bolívia em um narcoestado.
Na minha vida nunca vi ou entrei em contato com Soros. Como acadêmico assisti a uma conferência internacional no México em 2002, em que é possível ter havido gente de Soros, mas também de muitas outras organizações das mais variadas ideologias políticas. A referência ao narcoestado é ridícula, uma invenção tola e gratuita.

Outros rumores falam de nepotismo no governo.
Desde que assumimos o podem, nos colocamos uma série de objetivos. Uma luta implacável contra a corrupção, sem nos importar se fosse o amigo, o conhecido, o familiar, quem fosse. Deveríamos cortar pela raiz qualquer tipo de corrupção. Evo, com três semanas de governo, expulsou o vice-ministro de Transporte por colocar em prática certos tipos de extorsão. Isso até hoje continua igual, de modo inflexível. Além disso, temos instruído que qualquer familiar que se aproxime do gabinete será expulso de imediato.

Até aonde vai o processo boliviano?
A meta irrenunciável é a justiça social. Mas não é somente um problema de justiça histórica dos povos indígenas. Nesta coexistência tensa entre Estado, monopólios e a esfera pública não-estatal está a possibilidade de que o neoliberalismo seja com o tempo um tipo de pós-capitalismo, porque o socialismo não é um tema de decretos, é um tema de vontade, é um tema de construção da sociedade, de reapropriação de capacidades pelo Estado. Agora se está jogando a sorte do pós-capitalismo na Bolívia, porque só haverá socialismo no país quando houver trabalhadores e índios organizados no contextos dos recursos públicos.

O senhor sente neste projeto o legado de Che Guevara?
Che é uma referência eterna. E quando se aspira a reparar todo tipo de injustiça, sua ética é necessária. No aspecto pessoal, me interessam e tenho estudado os escritos econômico de Che, suas grandes polêmicas.

Como o senhor descreve a personalidade de Evo?
Escrevi um texto que se chama o "O evismo", no qual analiso duas dimensões da figura de Evo: a histórica processual e a histórica individual pessoas. Não se pode entender a Evo sem 30 anos de formação e elaboração do movimento indígena e suas vertentes. A principal virtude de Evo é que ele conseguiu representar a capacidade de articulação e de síntese que encarna a vontade geral da nação.

Evo vem do sindicalismo reivindicativo, mas tem a habilidade de se articular com diversos outros setores populares em busca de um projeto comum. Evo é uma criatura da história, levando em conta que a história foi modelada em parte, como diz Sartre, pelo próprio indivíduo. E diria mais: Evo nos modela a todos com sua liderança.
 

Fonte: Rebelión – Tradução: Fernando Damasceno

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