O STF e a liberdade de empresa

Tem dividido a opinião dos movimentos sociais e forças progressistas a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, no dia 17 de junho, optou pela não obrigatoriedade da formação superior em jornalismo para o exercício da profissão.

Quando a gente fala que “o Supremo derrubou o diploma” esse fato de valor histórico fica nublado, parecendo dizer respeito só aos jornalistas.

Vamos relembrar alguns elementos, fundamentais neste episódio da nossa Democracia.

1 – Os argumentos dos ministros do STF confundiram (talvez deliberadamente) liberdade de imprensa e liberdade de empresa. A liberdade, pelo menos em tese, é inerente a qualquer fazer jornalístico; não pode ser confundida com as reivindicações do mercado, supostamente “auto-regulador”.

2 – A ação na justiça foi iniciada pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão de São Paulo. Mas o Ministério Público Federal entrou na onda.

3 – O ministro Gilmar Mendes deu a entender que cabe aos empresários da comunicação regular o setor. Mas nós, sociedade, estamos satisfeitos com este tipo de regulamentação que hoje se institucionaliza?

Não me parece equivocada a avaliação de que os grandes beneficiados foram os empresários. Do outro lado, estão os maiores prejudicados: os trabalhadores-jornalistas e a sociedade, pois a qualidade da informação pode cair ainda mais do que temos presenciado.

Para manter a audiência, canais de TV nos disponibilizam modelos, misses e mulheres seminuas, apresentando informativos ou como manchetes.

No caso dos jornais tablóides, fica evidente que o valor das manchetes não é a notícia, mas os lucros. Muitos sequer contratam jornalistas. Como são geralmente do mesmo grupo empresarial que mantém veículos renomados, simplesmente copiam – sem nenhum critério – trechos de reportagens. E pior: costumam não contratar repórteres a mais. Somente editores.

A prática do jornalismo tem pouco a ver com talento – como preconceituosamente defendeu Gilmar Mendes – mas com vocação, com uma rotina de esforço e, principalmente, com a disponibilidade para o aprendizado da ética profissional.

A armadilha é que geralmente supomos ser o trabalho do jornalista puramente intelectual. Existe algo mais braçal do que produzir cinco ou seis matérias por dia, num ritmo frenético, e sequer sem direito a pausa para um lanche? Algo pior do que virar a madrugada – tudo pelo compromisso com a notícia – e no final das contas não receber uma hora-extra?

Eis a liberdade de empresa que se institucionaliza com a decisão do STF. Se não há categoria, não há conselhos, não há sindicatos, somente indivíduos que livremente “vendem” sua força. É isso que pode acontecer com a maioria dos trabalhadores-jornalistas, agora formalmente sujeitos à exclusivamente à liberalidade do mercado.

Oura questão: não se aprende ética no mercado. O melhor lugar para discutir seus conceitos e a função social do jornalismo é o banco de escola. Via de regra, o ritmo de trabalho frenético dos jornalistas atropela essas reflexões.

Não estou falando de uma educação para o mercado, mas de uma relação de ensino capaz de mostrar ao profissional que cada escolha sua é também um ato de cidadania. Uma empresa não forma ninguém. Ela simplesmente contrata pessoas com o perfil desejado.

Um amigo afirmou estar assustado. Ele soube que, em uma universidade do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, alunos já não têm o menor pudor de admitir, por escrito NAS PROVAS DE ÉTICA que podem, sem tropeços, escrever o que solicita o político ou empresário. Para isso, bastaria pagar. Mais uma vez repito: os alunos escrevem tal asneira nas provas de ética. 

O decreto-lei derrubado pelo STF era da ditadura militar, de 1969. Foi um ato enviesado do regime autoritário, que pretendia impedir o acesso de intelectuais opositores aos jornais, mas acabou resultando em 40 anos de reconhecimento profissional.

A tendência atual é reconhecer e regulamentar as profissões. Isso não tem nada a ver com a censura. Está relacionado com a exigência e controle mínimo de qualidade no serviço prestado. Exemplos clássicos: conselhos regionais e federais de Engenharia e Arquitetura, Medicina, além da Ordem dos Advogados do Brasil.

A decisão do STF foi baseada no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, inciso IV, que diz: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.  Mas faltou completar com o inciso XIII: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

O decreto-lei da ditadura já mostrou que as tentativas de censura precisam ser bem costuradas. Do contrário, o tiro pode sair pela culatra. A meu ver, neste caso não será diferente. É impossível exercer o controle absoluto das idéias e do pensamento.

A trincheira está posta: o silêncio do Governo, Congresso, sindicatos e Centrais será um grande débito com o futuro dos demais trabalhadores e da nossa Democracia.

Faço minhas as palavras da poetiza Cecília Meireles, no Romanceiro da Inconfidência:

“Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta/que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda/e a vizinhança não dorme, murmura, imagina, inventa, não fica bandeira escrita, mas fica escrita a sentença ….”


Verônica Pimenta é assessora de imprensa da CTB/MG. Graduada em Jornalismo e Radialismo, mestre em Comunicação Social pela UFMG, atualmente compõe a diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais.

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