Individualidade esmigalhada – uma reflexão sobre suicídios de trabalhadores em seu ambiente laboral

Só agora, passados alguns meses, me obriguei a oferecer à militância da CTB minhas reflexões sobre uma notícia que recebi de um amigo advogado de que em maio de 2009, um empregado da VALE ([1]) havia se atirado embaixo de um trem que transportava milhares de toneladas de minério de ferro, parte desse minério certamente extraído por ele nos turnos da semana que se encerrava, quando recebera a notícia que estava numa das listas de demissão definida pela empresa.

É certo que qualquer ato extremado de desistência da vida, ainda que vindo da parte de um ser humano desconhecido, tem a capacidade de abalar a maioria das pessoas que ainda preservam algum tipo de sensibilidade e, assim sendo, é como se fossemos tod@s “tocados” pelo desespero único e abissal daquele Outro que se entregara ao flagelo. Mas reconheço que, para mim, essa perturbação ganha ainda outros contornos. Por força de minha militância sindical([2]) já vivenciara algumas histórias parecidas em minha própria categoria profissional, os eletricitários do Rio de Janeiro. 

Coloca-se então a seguinte questão: que tipo de processo de individuação é esse que faz com que alguns operários, quando em situação de demissão, decidam suicidar-se dentro de seu próprio ambiente industrial, numa clara redução de sua dimensão e possibilidade humana?

Respondemos a isso relembrando duas questões:

1) que a vida social é, por si só, estruturante do Ser Humano e que cada um de nós dá sua contribuição para a realização de toda essa humanidade ou barbárie do mundo. De certa forma, isso nos lembra Che Guevara que afirmava que “Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros”.

2) uma vez que a perda da identificação laboral de um trabalhador é confundida com a sua própria identidade individual talvez exista uma última grande contribuição social nesse seu último e desesperado ato, enquanto indivíduo da classe explorada, que vive da venda de sua força de trabalho que se constituiria na representação mais radical da perda da noção de pertencimento: deixar seu corpo físico em definitivo na empresa, quer nos trilhos das locomotivas da VALE, quer na torre de transmissão de energia elétrica da Light ou ainda nos fornos siderúrgicos como aconteceu no período pós-privatização da CSN.

E se dizemos apenas “deixar o corpo” é porque nos parece evidente que sua subjetividade, parte essencial de sua individualidade, já havia sido capturada anteriormente pelos patrões e pela “ideologia da fábrica” e, de certa forma, estaria aprisionada ao ambiente industrial, tal como se estivesse condenado a uma sentença que o vinculasse de maneira perpétua àquele ambiente físico e organizacional.

Ora, também Jung ([3]), ao tratar do processo de individuação teria reconhecido que o indivíduo construiria a consciência do seu eu pela importância do papel que cumpriria em sua coletividade. Seria, portanto, explicável ([4]) o fenômeno de identificação entre trabalhadores e sua organização principalmente nas empresas de grande porte e cuja natureza produtiva está impregnada de valoração de status e benefícios diferenciados num mercado de trabalho sempre tão indiferente aos direitos trabalhistas.

Isso sem aprofundar todas as técnicas de Treinamento, Desenvolvimento e Endomarqueting desenvolvidas pelas teorias de administração, com ajuda da psicologia ([5]) que buscam reforçar esse sentimento de “time” para criar relações de trabalho artificialmente “harmônicas” entre o capital e trabalho e, conseqüentemente, maximizar os resultados quanto à produtividade da força de trabalho e maximização da mais-valia.

É, portanto possível embora não natural, repetimos, que haja uma tendência, socialmente produzida, que entre os empregados e empregadas de uma empresa, depois de anos de serviço, esses passem a “ler o mundo” a partir do olhar forjado dentro da organização. Assim se a “consciência de si” desses operários passa pela concepção de ser “petroleiro”, “lighteano”, “mineiro da Vale ou da CSN”, “do time da Fiat ou da Ford”, entre outros.

E, nesse caso, a perda do posto de trabalho é, sem dúvida, aniquiliante da própria idéia que esse operário pudesse ter de si mesmo. Quando a empresa logra se apropriar da subjetividade de seu trabalhador ou trabalhadora[6] (6) instalando-se como a verdade de sua razão de ser, a demissão teria a capacidade de transformá-lo em uma nulidade. Isso revela uma vez mais como, além de todos os horrores do sistema capitalista que estamos fartos de denunciar, esse modo de produção do capital, inviabiliza a auto-realização humana. Massacrada por métodos e relações de trabalho, o Ser Humano é tratado pelo patronato como se fora desprovido de espiritualidade e, esse processo é, sempre, veículo de autodestruição. Aquilo que o marxismo chamou de coisificação, da alienação do Ser.

Se o existir material é constitutivo da pessoa e cada um de nós só ganhamos existência na nossa singularidade, quando vemos capacidade intelectual cognitiva subjugada apenas pelo aspecto material de nossas vidas, a saber, pelas exigências da reprodução de nossas vidas e de nossas famílias, a ameaça da perda de nossos empregos (num momento de crise do capitalismo onde já se aponta para perda de milhares de empregos em nosso país e para maiores restrições no mercado de trabalho) pode mesmo representar para muitos de nós uma condenação à morte, que o suicídio vem apenas corroborar.


[1] Nova “marca” da conhecida companhia Vale do RIODOCE privatizada no Governo FHC num claro crime lesa-Pátria . 

[2] A autora militou durante 29 anos na categoria urbanitária tanto na base do Rio de Janeiro quanto em sua Federação Nacional.

[3] Carl Gustav Jung (1875/1961). Suíço. filho de pastor protestante e mãe instruída teve contato com a natureza e os livros de literatura, filosofia e teologia. Médico dedicou-se aos distúrbios mentais o faz desenvolver profundos estudos sobre a mente e suas conclusões o aproximou-se de Freud. Entretanto, Jung afirmava que o inconsciente não é subproduto da consciência nem mero depósito de recalques e frustrações sexuais, como pensava Freud. Para ele o inconsciente é uma entidade viva, independente de nossa percepção dele, acima das noções dualistas de bem e mal. É a outra parte de nossa psique que o ego desconhece. Ele está sempre atuando e faz com que os sonhos, em sua linguagem simbólica, sejam a representação fiel da psique que a razão nos impede de entender. Para Jung o sentido da vida é a individuação: processo de profundo auto-conhecimento onde tomamos a coragem de nos confrontar com velhos medos e o que desconhecemos de nós próprios.

[4] Intencionalmente recusamos o termo natural nessa questão porque entendemos que estamos no campo da cultural e nesse campo não há nada natural.

[5] Hoje em dia há inclusive uma área denominada Psicologia Empresarial.

[6] Interessante registrar que nunca soube de notícias de suicídios deste tipo entre mulheres trabalhadoras. Uma hipótese a ser pesquisada poderia analisar se a própria divisão sexual do trabalho e a vinculação obrigatória (e sem dúvida, discriminatória) da mulher trabalhadora ao serviço doméstico, vide a dupla jornada de trabalho, não impediria que sua visão pudesse se pautar apenas no vínculo empregatício formal pois há sempre uma casa e, em muitos casos, filh@s a serem cuidados.

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