Uma característica central das crises econômicas que abalam periodicamente o modo de produção capitalista, sobre a qual já nos falava Karl Marx, é a destruição maciça de capital, seja real ou fictício. Na atual crise ninguém sabe dizer com precisão o valor do capital que já foi destruído nos diferentes setores e ramos da produção (com destaque para a esfera financeira), mas é certo que se eleva a muitos trilhões de dólares.
A expansão dos déficits públicos parece ser a contrapartida necessária deste processo em nossa época, uma vez que os Estados nacionais incorrem em fabulosas despesas na tentativa, desesperada e nem sempre bem sucedida, de conter e reverter o curso impetuoso da recessão.
Gastança
Recentemente, o Fundo Monetário Internacional estimou em 10,8 trilhões de dólares o custo da crise global para os governos, valor equivalente a quase oito PIBs do Brasil. As potências capitalistas respondem pelo grosso desses recursos (US$ 9,2 trilhões).
Com a gastança, as nações imperialistas deverão contrair um déficit de 10,2% de seus PIBs neste ano, para muitas o maior desde o fim da 2º Guerra. Os EUA estarão à frente, com o rombo no orçamento chegando a 13,5% do PIB. O déficit avança por dois motivos, ambos decorrentes da crise: expansão dos gastos, em função das medidas anticíclicas, e redução da receita, determinada pela queda da renda dos contribuintes.
Desequilíbrios
O descompasso entre receita e despesa dos governos suscita preocupações e projeta um cenário de sombras sobre o futuro da economia mundial na medida em que tende a agravar os desequilíbrios nacionais e globais, refletindo-se especialmente na instabilidade dos câmbios.
Por isto, muitos economistas acreditam que os efeitos da atual crise não vão desaparecer tão cedo. Quando a recuperação tiver início, problemas de fundo emergirão talvez com maior força. Em economia, dizem os especialistas, não existe almoço grátis. É de se esperar que o endividamento excessivo dos governos, nas potências capitalistas, vai cobrar um preço.
Cresce o temor de um declínio ainda maior do dólar, o que, se ocorrer, pode despertar o fantasma da inflação. Vai ficando mais compreensível a convergência entre a recessão global, que não deixa de ser cíclica, e a crise da hegemonia americana (e, por consequencia, da ordem imperialista internacional), que (esta sim) tem inegavelmente um caráter estrutural.
Purgando os pecados
A destruição de capitais é uma forma do sistema capitalista purgar os pecados e as contradições que carrega, é como uma consciência amarga e implacável que acompanha o sistema em seu caminho e, periodicamente, vem à baila nas crises. É a forma violenta do sistema restabelecer o equilíbrio e a unidade entre produção e consumo.
Já a intervenção dos Estados capitalistas é feita com o intuito de alterar o curso espontâneo das coisas, que na economia burguesa é determinado fundamentalmente pelo comportamento anárquico dos mercados.
Socializando prejuízos
Os governos agem em nome de toda a sociedade, mas atendem preferencialmente os interesses especial de uma classe, a classe dos capitalistas, que há séculos subordinou a ação dos Estados aos seus desígnios. As autoridades buscam impedir ou amenizar, com recursos públicos, a destruição de riqueza privada e desobstruir os canais onde a circulação do capital (na forma dinheiro ou na forma mercadoria) está engasgada, intervindo nos mercados em socorro dos capitalistas, socializando prejuízos, provendo liquidez, reativando o crédito, bem como resgatando bancos e grandes empresas, como fizeram Bush e Obama com o Citigroup, Frannie Mae e Freddie Mac, AIG e GM, entre outras.
É este, em síntese, o conteúdo do déficit público crescente dos EUA, fruto de muitas incógnitas, ao lado da impressão desbragada de papel-moeda pelo FED (Federal Reserve, banco central estadunidense). Os efeitos desta intervenção do Estado, porém, são contraditórios e em boa medida duvidosos, sem falar que constituem uma negação descarada da ideologia neoliberal, que sempre pretextou rigor fiscal e o “Estado mínimo” para negar o atendimento de demandas populares que supõem aumento dos gastos públicos. O caráter de classe do Estado capitalista, sua subordinação aos interesses privados dos grandes empresários, transparece nitidamente nessas intervenções. Os economistas com espírito crítico duvidam da eficácia das medidas adotadas até o momento, mesmo porque elas não conduzem à reativação da demanda das grandes massas populares, deprimidas pela crise, e negligenciam a relevância do desemprego, que nos EUA está em alta desde o início da recessão há quase 20 meses.
Ilusões
Ironicamente, as ilusões com o poder miraculoso da intervenção estatal abundam entre os ideólogos e políticos neoliberais. Não custa lembrar que, em outubro do ano passado, poucos dias depois de baixar o primeiro pacote de socorro ao sistema financeiro nos EUA, de 750 bilhões de dólares, o ex-presidente dos EUA, George Bush, garantiu ao presidente Lula, em telefonema, que os efeitos das medidas se fariam sentir no prazo de duas semanas e meia, de forma que o diabo da crise logo seria exorcizado, fato revelado por Lula em entrevista publicada pela Agência Brasil em 10-08-08. Era mentira (como as armas de destruição em massa do Iraque) ou delírio.
A verdade é que os fatos não corresponderam às expectativas otimistas do bufão imperialista. A recessão se agravou desde então e Obama teve de editar um novo pacote econômico ao assumir, dobrando a aposta (e os gastos) contra a crise. O erário foi sangrado em cerca de 1,5 trilhão de dólares, generosamente destinados ao programa de socorro ao sistema financeiro (TARP).
Já estamos há quase um ano do pacote Bush e a recessão prossegue. Embora em intensidade menor, o desemprego continua subindo e derrubando o consumo. Desde o início da recessão, no final de 2007, até o início do segundo semestre deste ano, o número de desocupados nos EUA cresceu 7,2 milhões, segundo informações oficiais. Ainda não há sinais confiáveis de recuperação, embora os otimistas se animassem com a queda de 1% do PIB no último trimestre pelo fato de que os especialistas esperavam um resultado pior.
Os limites do Estado
O caráter objetivo dos fenômenos econômicos se revelam nesses fatos, marcando a independência dos acontecimentos que configuram a crise em relação aos desejos e às ações dos que julgam governar o mundo. Aqui cabe recordar uma famosa observação de Karl Marx, feita no livro “O 18 Brumário”:
“Os homens fazem sua própria história”, acentuou o pensador alemão, “mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas do passada. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”
Não é a política econômica de boa ou má qualidade que provoca a crise, embora possa contribuir para sua causa, que na realidade está radicada nas contradições intrínsecas à reprodução da sociedade capitalista. De igual maneira, os fatos sugerem que a política econômica não é de grande eficácia frente à crise nas potências capitalistas quando confrontamos seus resultados com as expectativas criadas.
À luz da dialética
Isto significa que o poder do Estado nas economias capitalistas, sua capacidade de determinar os rumos da reprodução e de prevenir ou contornar crises, é limitado, o que não quer dizer que seja nulo. Provavelmente a catástrofe seria maior sem a intervenção dos Estados e esta se revela particularmente necessária nos países em desenvolvimento.
De todo modo, é preciso desenvolver uma compreensão dialética das políticas econômicas aplicadas pelos Estados capitalistas, pois elas têm uma natureza contraditória e, neste caso, efeitos divergentes em curto e médio prazo. Ao mesmo tempo em que podem contribuir para amenizar os efeitos da recessão tendem a agravar, com os déficits, os desequilíbrios mundiais e projetar problemas ainda mais sérios para o futuro.
American way of life
Por trás da atual crise econômica insinua-se uma perturbação mais profunda da ordem imperialista mundial remanescente dos acordos de Bretton Words e fundada na hegemonia dos EUA e no padrão dólar. Esta ordem foi corrompida pela decadência de Tio Sam, que se arrasta há décadas
Cresce em todo o mundo a consciência dos custos crescentes e insustentáveis do parasitismo imanente ao estilo de vida norte-americano(american way of life), embriagado pelo consumismo e ancorado num endividamento insustentável e na supremacia do padrão dólar.
Novo SMI
Não é sem razão que China, Rússia, Índia, Brasil e outros países, inclusive a França, defendem um novo Sistema Monetário Internacional (SMI) e procuram tomar medidas nesta direção. Sempre achei, em polêmica com os apologistas do império, que a supremacia do padrão dólar não vai durar muito e é o que a vida vai mostrando.
Todavia, a mudança do sistema monetário internacional não resolve os problemas da humanidade. É preciso ir além e focalizar a luta contra a ordem imperialista de uma perspectiva histórica mais avançada. É hora de levantar, concomitantemente com a batalha por uma nova ordem mundial, a bandeira do socialismo. Sem destruir o sistema capitalista, fonte primeira e última das crises, o ser humano não se libertará da alienação, da exploração, da miséria, das crises ou das guerras.
Umberto Martins é jornalista e editor do Portal CTB