Destruição de capital real e fictício


De um ponto de vista marxista, as crises econômicas do capitalismo podem ser definidas como uma solução de continuidade do processo de circulação, valorização e reprodução do capital, que se manifesta tanto na esfera produtiva (D-M-D´), como superprodução relativa de mercadorias, quanto na órbita financeira (D-D´), com a interrupção do crédito.  

A paralisação do processo de reprodução é acompanhada naturalmente da destruição de capitais, que se reflete também na ociosidade dos fatores de produção. Em sua obra “Teorias da mais-valia” (1), Karl Marx identificou e as duas formas mais relevantes em que geralmente se manifesta o fenômeno, que por sinal estão entrelaçadas e não devem ser analisadas isoladamente.

Capital real inoperante

“Quando se fala de destruição de capital por crises, há duas coisas a distinguir”, observou o pensador e revolucionário alemão:

– À medida que estagna o processo de reprodução e que o processo de trabalho se restringe ou para de todo em certos pontos, destrói-se capital real. Não é capital a maquinaria que não se utiliza. O trabalho que não se explora equivale a produção perdida. Matérias-primas que jazem ociosas não são capital. Edifícios (e também nova maquinaria construída) que para nada servem ou permanecem inacabados, mercadorias que apodrecem em depósito, tudo isso é destruição de capital. Tudo isso se reduz a paralisação do processo de reprodução e a que as condições de produção existentes não exercem na realidade as funções de condições de produção, não são postas em atividade. Então seu valor de uso e valor de troca vão para o diabo.   

– Mas, no segundo significado, destruição de capital por crises é depreciação de valores, que os impede de renovarem depois, na mesma escala, o processo de se reproduzirem como capital. É a queda ruinosa dos preços das mercadorias. Com ela não se destroem valores de uso. O que um perde, o outro ganha. Os valores operantes como capital ficam impossibilitados de se renovar como capital nas mesmas mãos. Os velhos capitalistas quebram” (à exceção dos mais espertos ou dos que são considerados “grandes demais para quebrar”, que socializam os prejuízos com o público apropriando-se de recursos estatais).

Para exemplificar, Marx acrescenta:

– Se o valor das mercadorias que um deles vendia para reproduzir seu capital era de 12000 libras esterlinas, que incluíam 2000 de lucro, e se elas caíram para 6000, não pode esses capitalistas, com as 6000 libras, pagar as dívidas que contraiu, nem recomeçar o mesmo negócio na mesma escala, mesmo que nenhuma dívida tivesse, uma vez que os preços das mercadorias estão abaixo dos preços de custos delas. Destrói-se assim capital de 6000 libras, embora o comprador dessas mercadorias, por tê-las adquirido pela metade do preço de custo, possa com a reanimação dos negócios prosseguir muito bem e ter até obtido lucro.

– Grande parte do capital nominal da sociedade, isto é, do valor de troca do capital existente, é destruída de uma vez para sempre, embora essa própria destruição, por não atingir o valor de uso, incentive muito a nova reprodução. Este é também o momento em que os banqueiros enriquecem à custa do industrial.

Ociosidade

A primeira forma de destruição do capital a que Marx se referiu diz respeito ao capital real empregado no processo de produção e circulação pelos industriais, comerciantes, agricultores e empresários de vários ramos do setor de serviços, com exceção do financeiro. É destruição de capital constante, fixo e circulante, materializado na ociosidade dos meios e objetos de trabalho. É destruição de capital variável e de produção potencial através do desemprego em massa. A máquina que não se utiliza, a matéria prima e matéria acessória que jaz ociosa, a mercadoria que apodrece sem saída, tudo isto constitui destruição de capital, da mesma forma que o trabalho que não se explora (desempregado) é produção potencial perdida ou destruída.

A paralisação do processo de reprodução é ao mesmo tempo a interrupção da circulação e implica forçosamente em destruição do capital pelo fato de que é através da produção e da circulação que o capital se reproduz. “Ocorre paralisação na reprodução e, por isso, no fluxo de circulação”, explica Marx. “Compra e venda se imobilizam reciprocamente, e capital desocupado aparece na forma de dinheiro ocioso”.

Na segunda forma da destruição de capital estão compreendidos os investimentos do chamado capital fictício (ações, títulos, etc.). Embora a depreciação de valores nominais envolvidos neste caso seja bem mais expressiva do que os prejuízos impostos pela crise atual ao capital real (como se deduz das intervenções governamentais, que priorizam o resgate dos bancos) não restam dúvidas de que para a sociedade os impactos da recessão no setor produtivo são mais relevantes. Se a crise ficasse restrita ao capital fictício, o que não é o caso, a repercussão não seria a mesma.       

Depreciação do capital fictício

Marx salienta que “a queda do capital meramente fictício, dos títulos do governo, das ações, etc. – desde que não leva o Estado e as sociedades anônimas à bancarrota, e não gere, com o abalo do crédito dos capitalistas industriais que detêm aqueles papéis, o estorvo geral da reprodução – resulta em simples transferência de riqueza de uma mão para outra e terá em geral influência favorável na reprodução, se consideramos que os novos-ricos que colhem na baixa tais ações ou papéis, em regra empreendem mais que os antigos detentores”.

Todavia, são raros os casos de crises econômicas que afetam apenas o capital fictício, dado a estreita interdependência das duas fórmulas de circulação do capital descrita pelo pensador alemão (D-M-D´ e D-D´). Em certa medida, o crash da bolsa de Nova York em 1987 foi um exemplo neste sentido, pois apesar da forte depreciação das ações (em 19 de outubro, a média industrial Dow Jones caiu 508 pontos, ou 22,6%, praticamente o dobro da maior queda já registrada desde o crash de 1929) a economia real continuou em crescimento. A recessão só se instalou em 1991.

Inversão da realidade

A interação do capital real com o capital fictício também pode ser facilmente percebida na atual crise, que teve origem em 2006 com o estouro da superprodução de imóveis, evidenciada pela redução das vendas e dos preços. Foi a “queda ruinosa dos preços das mercadorias”, de que falava Karl Marx, que inviabilizou o refinanciamento artificial dos empréstimos subprimes, fez crescer a inadimplência e precipitou a crise financeira.

Os fatos sugerem a dependência e subordinação do capital fictício ao capital real e não o contrário. O pensamento dominante, porém, promove uma visão invertida da realidade, tal qual um espelho.

Crises e guerras

A destruição de capitais é também um remédio amargo para as crises e pode ser considerada uma necessidade que às vezes ganha corpo nas guerras. A 2ª Guerra Mundial, que teve entre suas causas a Grande Depressão deflagrada em 1929, foi um processo de destruição em larga escala das forças produtivas que, contraditoriamente, abriu caminho a um processo de reconstrução e recuperação que levou ao pleno emprego e aos “anos dourados” do capitalismo (do pós-guerra até o início dos anos 70 do século XX os países mais industrializados experimentaram altas taxas de crescimento, baixo nível de desemprego e crises cíclicas de baixa intensidade).

Crises e guerras costumam andar de mãos dadas no capitalismo e esta é uma das razões pelas quais a humanidade se confronta hoje, talvez mais do que em qualquer outra época da história, diante do dilema enunciado por Engels e Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie.    


Umberto Martins é jornalista e editor do Portal CTB

NOTA

1-      Os trechos citados foram extraídos do livro “Teorias da Mais-valia”, volume II, capítulo XVII, publicado no Brasil pela Difel (Difusão Editirial S.A)

 

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