Dólar versus yuan


Em discurso na Universidade John Hopkins de Washington, na segunda-feira (28-9), o economista norte-americano Robert Zoellick, presidente do BIRD (Banco Mundial), afirmou que os dias do dólar como moeda internacional estão contados. Tal comentário traduz uma franca admissão da crise que abala a hegemonia da moeda emitida pelos imperialistas americanos.

Depois de experimentar uma brusca e fugaz recuperação em meados do ano passado, no momento em que a crise econômica mundial atingia seu auge e suscitava uma expressiva fuga de capitais de vários países para os EUA, o dólar voltou à sua previsível trajetória de queda. Recuou frente ao euro, que estava cotado a US$ 1.45 na quinta-feira (30) e muitas outras moedas relevantes, como o iene japonês, a libra esterlina e também o nosso real, que subiu mais de 30% ao longo deste ano e já retornou aos valores pré-crise.

Risco de inflação

A depreciação tende a continuar em função das emissões desbragadas e da forte expansão do déficit público americano, feitas com o propósito de contornar a crise. Não são poucos os economistas que alertam para os riscos inflacionários embutidos na expansão da oferta de moedas e dos gastos governamentais, que tendem a se manifestar de forma mais clara quando a economia sair da crise. Neste caso, a elevação das taxas de juros pode ser um remédio inconveniente, com amargos efeitos colaterais, mas inevitável.

O declínio do dólar é um fato histórico que a esta altura já não desperta grandes polêmicas e, a bem da verdade, já estava em curso. A crise agravou o quadro de instabilidade monetária internacional e reforçou a necessidade de uma nova ordem econômica mundial, conforme reconheceu o presidente do Banco Mundial.

O que há de novo?

 A novidade que se insinua discretamente na dança das moedas não reside no avanço do euro, do iene ou do nosso real, mas na posição a cada dia mais proeminente da moeda chinesa, o yuan. Em julho de 2005, o governo comunista abriu mão da política de câmbio fixo (praticada desde 1994), em resposta às pressões dos EUA e do finado G7, embora sem permitir a livre flutuação.

Desde então, a moeda chinesa flutua de modo controlado, no sistema de bandas, segundo a evolução de uma cesta de moedas composta pelo dólar, o euro, o iene, a libra esterlina e o won coreano. O yuan já acumula uma sensível valorização. Um dólar comprava 8,28 yuans antes da mudança da política cambial. Hoje vale 6,82 yuans. Convém notar que a apreciação cambial não reduziu a competitividade da indústria chinesa nem o superávit comercial do país, obtido principalmente nas transações com os EUA.  

Conversibilidade

No mesmo dia em que o presidente do BIRD reconhecia a decadência do dólar como moeda de reserva internacional, a China lançava, em Hong Kong, o primeiro bônus soberano em yuans, no que foi interpretado como mais um passo no sentido de promover a conversibilidade internacional da sua moeda. Foram emitidos títulos no valor de 879 bilhões de dólares, com rendimento de 2,25% (prazo de dois anos), 2,7% (três anos) e 3,3% (cinco anos). A perspectiva de valorização do yuan torna os bônus mais atrativos para os investidores estrangeiros.

Outras iniciativas foram tomadas na mesma direção, cabendo destacar os acordos de swap cambial (troca de moedas, utilizando o yuan e descartando o dólar) no valor de 95 bilhões de dólares com seis países e a autorização para que quatro grandes cidades chinesas utilizem o yuan chinesa para pagamento de importações e exportações. O enorme fluxo de capitais e mercadorias entre a China e o exterior sugere que não levará muito tempo para que a plena conversibilidade da moeda chinesa seja alcançada.

Quem diria?

Poucos observadores suspeitavam três ou quatro anos atrás que o bicho da seda poderia corroer o valor do dólar e comprometer a supremacia do dinheiro emitido por Tio Sam. Os fatos evidenciam que a força de uma moeda reflete a força relativa da economia nacional que representa. É comum, entre os economistas, a inversão desta realidade, que se verifica, por exemplo, na suposição (falsa e idealista) de que quem detém o poder de emitir a moeda hegemônica tem também a faculdade de ditar o ritmo e a direção da acumulação de capitais no mundo. Outra falácia corrente consiste em atribuir ao dólar um “valor em si”, amparado na aparência de que, afinal, trata-se de uma moeda sem lastro.

Há mais de um século Karl Marx já observava que o dinheiro, no final das contas, nada mais é do que representação de trabalho abstrato e, como tal, está lastreado, amarrado e subordinado à produção de valor de troca, ou seja, de mercadorias. Revela-se aí o segredo da relação entre moeda e produção. A ascensão do yuan, ainda incipiente, não é mais que a projeção monetária do crescente poderio econômico da China na geografia internacional. Reflete a força da indústria, que conduziu o país à condição de potência financeira. A mais próspera nação asiática tem mais de 2 trilhões de dólares em reserva, transformou-se na maior credora dos EUA, já lidera o ranking das exportações mundiais e, como consequência do colapso do sistema financeiro americano e europeu, possui hoje os maiores bancos do mundo.   

Déficit industrial

De igual modo, o declínio do dólar é o resultado da lenta e irresistível decadência da indústria norte-americana, refletindo o fenômeno que o economista Robert Brenner classificou de déficit industrial, dado pelo déficit da indústria no comércio exterior, que é basicamente um déficit de mercadorias. Ao longo da história o déficit comercial, que recuou na crise, é a causa mais relevante do declínio do dólar.

É com os olhos voltados para o desempenho da produção que devemos avaliar as perspectivas do euro. A chamada zona do euro, liderada pela Alemanha, sofreu com a crise tanto ou mais que os EUA e há muito vem exibindo um comportamento medíocre no que tange à produção. Por esta razão é difícil vislumbrar um futuro brilhante para o euro. O desenvolvimento desigual da China faz a diferença e tende a transformar o yuan, em futuro próximo, no principal rival do dólar. De todo modo, se é certo que ingressamos num período de transição na história da economia mundial parece também verdade que ainda estamos longe de um novo sistema monetário mundial. Este pressupõe novos consensos e mudanças mais profundas na geopolítica. Não será um caminho sem conflitos.  


Umberto Martins é jornalista e editor do Portal CTB

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