A atribuição do Prêmio Nobel da Paz deu lugar a um coro de elogios entre os líderes da Aliança Atlântica, mas também suscitou cepticismo no mundo. Ao invés de debater as razões que poderiam justificar esta escolha surpreendente, Thierry Meyssan expõe a corrupção do Comité Nobel e as relações que unem o seu presidente, Thorbjørn Jagland, aos colaboradores de Obama.
“Esta manhã, quando ouvia as notícias, a minha filha aproximou-se e disse-me: ‘Papá, ganhaste o Prêmio Nobel da paz'”. Esta é a comovente história que o presidente dos Estados Unidos contou aos acomodados jornalistas para comprovar que nunca desejou esta distinção e foi o primeiro a ficar surpreendido. Sem procurar saber mais, os títulos que aqueles jornalistas imediatamente apresentaram nos seus jornais falavam da “humildade” do homem mais poderoso do mundo.
Para dizer a verdade, não sabemos o que mais surpreende: a atribuição de uma tão prestigiosa distinção a Barack Obama, a encenação grotesca que a acompanha, ou ainda o método utilizado para corromper o júri e retirar a este prêmio a sua vocação inicial.
Em primeiro lugar, relembremos que, segundo o regulamento do Comitê Nobel, as candidaturas são apresentadas por instituições (parlamentos nacionais e academias políticas) e por personalidades qualificadas, principalmente magistrados e antigos laureados. Em teoria, uma candidatura pode ser apresentada sem que o candidato tenha sido disso avisado. Não obstante, assim que o júri decide, estabelece uma ligação direta com o candidato de modo a que ele seja informado uma hora antes da conferência de imprensa. Pela primeira vez na sua história, o Comitê Nobel terá omitido esta cortesia. Isso aconteceu porque, assegura-nos o seu porta-voz, o Comitê não ousaria acordar o Presidente dos EUA à noite. Talvez ignore que há conselheiros que se reúnem na Casa Branca para receber as chamadas urgentes e acordar o presidente se necessário.
O gracioso número protagonizado pela sua filha anunciando o Prêmio Nobel ao seu papá não basta para dissipar o mal-estar provocado por esta distinção. Segundo o desejo de Alfred Nobel, o prêmio recompensa «a personalidade que [durante o ano precedente] mais, ou melhor, contribuiu para a aproximação dos povos, a supressão ou redução dos exércitos permanentes, a aproximação e divulgação dos avanços pela paz». No espírito do fundador, tratava-se de manter uma ação militante e não de atribuir um diploma de boas intenções a um chefe de estado. Tendo os laureados por vezes escarnecidos do direito internacional depois de terem recebido o prêmio, o Comitê Nobel decidiu, há quatro anos, não voltar a recompensar um ato particular, mas honrar apenas personalidades que tenham consagrado a sua vida à paz. Deste modo, Barack Obama teria sido o mais meritório dos militantes da paz em 2008 e não teria cometido nenhum atentado ao direito internacional em 2009. Sem mencionar os detidos em Guantánamo e em Bagram, nem os afegãos e os iraquianos confrontados com uma ocupação estrangeira, que pensarão disto os hondurenhos esmagados por uma ditadura militar ou os paquistaneses cujo país se tornou o novo alvo do Império?
Vamos à questão fundamental, a qual a “comunicação” da Casa Branca e os media anglo-saxônicos querem esconder do público: os laços sórdidos entre Barack Obama e o Comitê Nobel.
Em 2006, o Comando Europeu (isto é, o comando regional das tropas dos EUA cuja autoridade abrangia então simultaneamente a Europa e o essencial da África) solicitou ao senador de origem queniana Barack Obama que participasse numa operação secreta entre agências (CIA-NED-USAID-NSA). Tratava-se de utilizar o seu estatuto de parlamentar para efetuar um périplo africano que permitisse ao mesmo tempo defender os interesses dos grupos farmacêuticos (face às produções não patenteadas) e de rechaçar a influência chinesa no Quênia e no Sudão [1]. Apenas o episódio queniano nos interessa aqui.
A desestabilização do Quênia
Barack Obama e a sua família, acompanhados de um assessor de imprensa (Robert Gibbs) e de um conselheiro político-militar (Mark Lippert) chegam a Nairobi num avião especial fretado pelo Congresso. O seu avião é seguido por um segundo, este fretado pelo Exército dos EUA, transportando uma equipa de especialistas em guerra psicológica comandada pelo general J. Scott Gration, pretensamente à beira da reforma.
O Quênia estava então em plena expansão econômica. Logo após os começos da presidência de Mwai Kibaki, o crescimento passou de 3,9% a 7,1% do PIB e a pobreza desceu de 56% para 46%. Estes resultados excepcionais foram obtidos reduzindo os laços econômicos pós-coloniais com os anglo-saxônicos e substituindo-os por acordos mais justos com a China. Para acabar com o milagre queniano, Washington e Londres decidiram derrubar o presidente Kibaki e impor um oportunista devoto, Raila Odinga [2]. Neste sentido, o National Endowment for Democracy suscitou a criação duma nova formação política, o Movimento laranja, e armou secretamente uma “revolução colorida” por ocasião das eleições legislativas seguintes em Dezembro de 2007.
O senador Obama é acolhido como um filho do país e a sua viagem é extraordinariamente mediatizada. Intromete-se na vida política local e participa nas reuniões de Raila Odinga. Apela a uma “revolução democrática” enquanto o seu “acompanhante”, general Gration, entrega a Odinga um milhão de dólares líquidos. Estas intervenções desestabilizam o país e suscitam os protestos oficiais de Nairobi junto de Washington.
Por ocasião deste périplo, Obama e o general Gration reportam ao general James Jones (então chefe do Comando Europeu e comandante supremo da NATO) em Estugarda, antes de regressar aos EUA.
A operação continua. Madeleine Albright, na qualidade de presidente do NDI (a filial do National Endowment for Democracy [3] especializada no tratamento de partidos de esquerda) viaja até Nairobi, onde supervisiona a organização do Movimento Laranja. Depois, John McCain, na qualidade de presidente do IRI (a filial do National Endowment for Democracy especializada no tratamento dos partidos de direita) vem completar a coligação de oposição no tratamento de pequenas formações de direita [4].
Por ocasião das eleições legislativas de Dezembro de 2007, uma sondagem financiada pelo USAID anuncia a vitória de Odinga. No dia das eleições, John McCain declara que o presidente Kibaki falseou o resultado do escrutínio a favor do seu partido e que na realidade é a oposição conduzida por Odinga que ganhou. A NSA, em parceria com os operadores locais de rádio, dirige SMS anônimos à população. Nas zonas povoadas pelos Luos (as etnias de Odinga), estes dizem: “Caros Quenianos, os Kikuyus roubaram o futuro das nossas crianças… Devemos tratá-los da única forma que compreendem… a violência”. Entretanto, nas zonas povoadas pelos Kikuyus, os SMS dizem: «não será derramado o sangue de nenhum Kikuyu inocente. Massacrá-los-emos até ao coração da capital. Para que se faça justiça, estabeleçam uma lista dos Luos que conhecem. Enviar-vos-emos os números de telefone para onde transmitir essas informações». Em poucos dias, esse país sereno perde-se em confrontos sociais. Os distúrbios fazem mais de 1 000 mortos e 300 mil desalojados. 500 mil postos de trabalho são destruídos.
Madeleine Albright está de regresso. Propõe a sua mediação entre o presidente Kibaki e a oposição que tenta derrubá-lo. Com discrição, distancia-se e coloca em cena o Oslo Center for Peace and Human Rights [N. do T.: Centro de Oslo para a Paz e Direitos Humanos]. Esta respeitada ONG é novamente presidida pelo antigo primeiro-ministro da Noruega, Thorbjørn Jagland. Rompendo com a tradição de imparcialidade do Centro, ele coloca dois mediadores em cena, cujas despesas são integralmente pagas pelo NDI de Madeleine Albright (quer dizer, pelo orçamento do Departamento de Estado dos EUA): outro antigo primeiro-ministro norueguês, Kjell Magne Bondevik, e o antigo secretário-geral da ONU, Kofi Annan (o ganês tem estado muito presente nos estados escandinavos depois de ter casado com a sobrinha de Raoul Wallenberg).
Para estabelecer a paz civil a aceitar o compromisso que lhe impõem, o presidente Kibaki é obrigado a aceitar criar um posto de primeiro-ministro e de confiá-lo a Raila Odinga. Este começa imediatamente a reduzir as trocas com a China.
Pequenos presentes entre amigos
Se a operação queniana acabou ali, a vida dos protagonistas continua. Thorbjørn Jagland negocia um acordo entre o National Endowment for Democracy e o Oslo Center, formalizado em Setembro de 2008. Uma fundação conjunta é criada em Minneapolis permitindo à CIA subsidiar indiretamente a ONG norueguesa. Esta intervém por conta de Washington em Marrocos e, sobretudo na Somália [5].
Obama é eleito presidente dos EUA. Odinga proclama vários dias de festa nacional no Quênia para celebrar o resultado das eleições nos EUA. O General Jones torna-se conselheiro de segurança nacional. Nomeia Mark Lippert como chefe de gabinete e o general Gration como adjunto.
Durante a transição presidencial nos EUA, o presidente do Oslo Center, Thorbjørn Jagland, é eleito presidente do Comitê Nobel, não obstante o risco que representa para a instituição um político tão artificioso [6]. A candidatura de Barack Obama ao Prêmio Nobel da Paz é enviada o mais tardar a 31 de Janeiro de 2009 (data limite regulamentar [7]), ou seja, doze dias depois da sua tomada de posse na Casa Branca. Vivos debates animam o Comitê que não chegou ainda a um acordo sobre um nome no princípio de Setembro, conforme previsto pelo calendário habitual [8]. A 29 de Setembro, Thorbjørn Jagland é eleito secretário-geral do Conselho da Europa em seguimento de um acordo de secretaria ente Washington e Moscou [9]. Esta boa ação pede outra em troca. Ainda que a qualidade de membro do Comitê Nobel seja incompatível com uma função política executiva de relevo, Jagland não desiste. Argumenta que a letra do regulamento interdita a acumulação de uma função ministerial e nada diz sobre o Conselho da Europa. Chega então a Oslo a 2 de Outubro. No mesmo dia, o Comitê designa o Presidente Obama Prêmio Nobel da paz de 2009.
No seu comunicado oficial, o Comitê declara, não por graça: “é muito raro que uma pessoa, na instância Obama, tenha conseguido captar a atenção de todos e dar-lhes esperança num mundo melhor. A sua diplomacia baseia-se no conceito de acordo com o qual aqueles que governam o mundo devem fazê-lo guiados por um conjunto de valores e de comportamentos partilhados pela maioria dos habitantes do planeta. Durante 108 anos, o Comitê do Prêmio Nobel procurou estimular este estilo de política internacional de que Obama é o principal porta-voz”.
Por seu turno, o feliz laureado declarou: “Aceito a decisão do Comitê Nobel com surpresa e profunda humildade. (…) Aceitarei esta recompensa como um apelo à ação, um apelo lançado a todos os países para que enfrentem os desafios comuns do século XXI”. Deste modo, este homem “humilde” crê encarnar “todos os países”. Aqui está algo que não augura nada de pacífico.
13/Outubro/2009
Notas:
[1] Déclaration de Barack Obama à l’annonce du prix Nobel de la paix 2009 , Réseau Voltaire, 9 octobre 2009. [2] Sobre os pormenores desta operação ver Le Rapport Obama, de Thierry Meyssan, a publicar.
[3] Raila Odinga é o filho de Jaramogi Oginga Odinga, que teve por principal conselheiro político o pai de Barack Obama.
[4] ” NED, nébuleuse de l’ingérence “démocratique “”, por Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 22 Janeiro de 2004.
[5] Em tempos, os EUA haviam criado com estas um partido, dirigido por Tom Mboya. Tratava-se então de lutar contra a influência russa e mesmo já chinesa.
[6] O Oslo Center participou igualmente na desestabilização do Irão, por ocasião das eleições presidenciais, encaminhando os fundos para o antigo presidente Khatami.
[7] Vice-presidente da Internacional Socialista, Thorbjørn Jagland é um fervoroso partidário da NATO e da entrada d Noruega na União Europeia. Frequenta as elites mundiais e participou nos trabalhos do Council on Foreign Relations, da Comissão Trilateral e do Grupo de Bilderberg. O seu percurso político foi manchado por vários escândalos de corrupção envolvendo os seus próximos, nomeadamente o seu amigo e ministro do plano Terje Rød Larsen (atual coordenador da ONU para as negociações no Médio Oriente).
[8] Foram entregues 205 candidaturas. Mas, em conformidade com o regulamento, apenas 199 foram consideradas aceitáveis. Atingido esse número, não era possível o Comitê Nobel juntar nomes suplementares, no curso das suas deliberações.
[9] O prêmio deveria ser entregue a 9 de Outubro. Por razões de organização, o laureado deveria ter sido determinado o mais tardar a 15 de Setembro. Moscou não pretendia Jagland, mas opunha-se ao polaco Wlodzimierz Cimoszewicz.
[10] Apesar de os Estados Unidos não serem membros do Conselho da Europa, têm uma grande influência. Moscou não desejava Jagland, mas queria impedir o polaco Wlodzimierz Cimoszewicz.
[11] ” Communiqué du Comité Nobel norvégien sur le prix de la Paix 2009 “, Réseau Voltaire, 9 de outubro 2009.
Thierry Meyssan é analista político, francês, presidente fundador do Réseau Voltaire e da conferência Axis for Peace. Publica todas as semanas crônicas de política estrangeira na imprensa árabe e russa. Última obra publicada: L’effroyable imposture : Tome 2, Manipulations et désinformations.