CULTURA: “Quincas Berro D´Água”: Malandragem anárquica

Baseado em obra de Jorge Amado, filme do diretor baiano Sérgio Machado mergulha na boemia e na malandragem e rende tributo ao Brasil miscigenado

Quincas Berro D´Água é daquelas fábulas tricotadas por Jorge Amado para pôr o universo baiano e, portanto brasileiro, no mesmo ambiente. Nelas entram dos malandros da zona boêmia aos policiais que se misturam aos marginalizados juntos com a sinhazinha e o sinhozinho decadentes. Negros, brancos, estrangeiros com seus sotaques, desfilam seus requebrados por espaços dignos do samba, do tango e das milongas. E acabam por definir o perfil deste Brasil miscigenado. Este é o universo que o diretor baiano Sérgio Machado trás para seu filme “ Quincas Berro D´Água ”, adaptação homônima da obra amadiana.

Machado trouxe a história para os nossos dias, ao tornar os personagens entidades que existem por si só. Os faz enfileirar quiprocós atrás de quiprocós a ponto de torná-los figuras das comédias malucas. Eles são vistos em situações, às vezes, repetitivas. Alguns espectadores riem, outros ficam perplexos. Então, o riso, gerado pela sucessão de loucuras perpetradas pelo grupo de amigos do falecido Quincas Berro D´Água, não predomina, mas se faz presente.

A comédia maluca tem seus encantos, pois abandona o realismo e mergulha numa espécie de malabarismo surreal ou se quiser o realismo mágico hoje deixado para trás. E ganha com isto instantes hilariantes, igual ao de Pastinha (Flávio Bauraqui) que, acossado por um cachorro bravo, pega a galinha errada para o despacho, ou a Mãe de Santo devolvendo o defunto Berro D´Água (Paulo José) a seus amigos em pleno terreiro que homenageia Iemanjá. Situação que destoa da reverência normalmente prestada à Divindade e aos mortos.

Personagens de cinema de massa

Nada disso, no entanto, incorre em desrespeito: a Mãe de Santo devolve a ousadia mandando o grupo que trouxe o defunto Berro D´Água fazer um despacho em desagravo a Iemanjá. Dá para sentir o nível da brincadeira. Machado apropria-se do texto de Jorge Amado sendo-lhe fiel, porém tomando certas liberdades. Seu grupo de malandros é mais solidário e fiel a seus “princípios” que o sinhozinho Leonardo (Vladimir Brichta) e a sinhazinha Vanda (Mariana Ximenes) que, dispostos a manter as aparências, deixam-se levar pelos encantos sensuais dos afrodescendentes encontrados pelo caminho.

Assim, os maliciosos não são os malandro s, prostitutas e cafetões, mas os parentes de Berro D´Água. E, por extensão, a classe média que finge que os afrodescendentes não existem, mas os enxergam pela via sensual, erótica, por que não, sexual. Machado consegue passar estas contradições que são, em suma, da própria estrutura sóciocultural brasileira, hipocrática, racista e moralista, pelo lado do humor, com toques de cinema de massa, passando longe de um “cinema popular”. Pois o cinema de massa disfarça as situações de degradação reinantes, dotando-as de certo esteticismo, sem discutir a marginalização a que os despossuídos são submetidos.

O espectador quase não os percebe nos ambientes sórdidos em que vivem. Passam por estes espaços rápido, grudados nos quiprocós, deles logo se distanciando. Entretanto, eles não estão ali por estar, mas porque uma estrutura os levou a tal. Neste tipo de cinema, eles existem como entidades, seres para si mesmo, vivendo situações grotescas eivadas de absurdo. As prostitutas se mostram ácidas, algumas resvalam para o estereótipo, como a afrodescendente brigona, destituída de humanidade. O que se quer, deste modo, é só provocar o riso. E não se trata aqui de buscar “sociologismo” onde não existe, mas de ver o filme de massa como ele realmente é.

Filme retrata perfil do país

Ainda que se encaixe no “cinema de massa”, o “ Quincas Berro D´Água ” de Machado não escapa às nuances e comentários de Jorge Amado, ao pôr a classe média em polvorosa diante da possibilidade de suas origens serem, enfim, desnudadas. Tudo faz para evitar que a mentira do “título nobiliárquico” seja desmascarada. Esta hipocrisia traz o filme de volta ao leito amadiano. Enfia sinhozinho e sinhazinha na zona, no boteco e na delegacia, até se mostrarem atraídos pelo sensualismo afrodescendente, bem ao estilo amadiano.

Não bastasse isto, o morto, ou o falecido, personagem emblemático da obra do escritor baiano, vide “ Dona Flor e Seus Dois Maridos ”, cumpre um papel mais do que honrado. Funcionário público, bem casado, acaba se misturando aos deserdados e se sentindo gratificado, até que a morte o pega e seus amigos decidem homenageá-lo, fazendo-o percorrer os ambientes por ele frequentados enquanto a polícia tenta localizá-los. Nessa caminhada, ele comenta as malquerenças familiares, o apego dos vivos à enganação e a liberdade que a morte lhe trouxe.

Enfim, um filme que se vê com atenção, com um riso aqui outro ali, e a lembrança de que a miscigenação, o sincretismo religioso e a carnavalização são características de um Brasil ingênuo, solidário e que, muitas vezes, pula a janela sem nenhum remorso ou culpa.

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Quincas Berro D´Água” . Comédia. Brasil. 2010. 104 minutos. Roteiro: Sérgio Machado, baseado em obra de Jorge Amado. Direção: Sérgio Amado. Elenco: Paulo José, Flávio Bauraqui, Vladimir Brichta, Mariana Ximenes, Marieta Severo.


Cloves Geraldo  é jornalista e cineasta, dirigiu os documentários “TerraMãe”, “O Mestre do Cidadão” e “Paulão, lider popular”. Escreveu novelas infantis,  “Os Grilos” e “Também os Galos não Cantam”.

Publicado no Portal Vermelho

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