Violência do outro lado do oceano

Me chamo Mirelle, sou jornalista e tenho 30 anos. Moro em Lyon, na França, com meu marido também brasileiro, desde dezembro do ano passado. Uma cidade que eu considerava segura, até agora.
A França está em plena campanha para encorajar as denúncias de agressões contra as mulheres. O governo se mobilizou e declarou que esse tipo de violência seria a Grande Causa Nacional de 2010. Aqui na França, 2 milhões de mulheres são agredidas por ano pelos seus maridos, e 400 morrem apanhando, ou seja, mais de uma por dia. São pelo menos 75 mil casos de estupro todos os anos, 205 por dia! A meu ver, o mesmo homem que estupra ou agride dentro de casa, é aquele que distribui murros no trânsito. Foi assim que eu entrei para as estatísticas.
Andando de bicicleta pela cidade, passei por um homem de uns 40 anos que ficou furioso e assustado quando tentou cruzar uma avenida, sem olhar para a direção de onde eu vinha. Buzinou e foi atrás de mim. Jogou o carro contra a minha bicicleta, quase me fazendo cair no chão. Desceu, gritou, e ao me ver calada em estado de choque, me deu um murro forte nas costas. Eu, sei lá como, consegui improvisar um francês para dizer que no meu país homem não pode bater em mulher, e depois dei-lhe umas bolsadas para me defender. A confusão foi muito além, ele ainda me perseguiu e ao me encontrar uma segunda vez, me ameaçou.
Chorando e muito desesperada, esperei o meu marido sentada na calçada para irmos à delegacia. Foram mais de seis horas entre depoimento e hospital, para fazer o exame de corpo de delito. “Contusão nas costas, torção no punho e estado de choque”, dizia o relatório médico. Incapacidade total de trabalho: 4 dias. Para ter valor penal, precisa ser de pelo menos oito. Ou seja, perante as leis francesas, eu não fui agredida o suficiente para processar o cara, já que não tive o nariz quebrado, nem fiquei com o olho roxo.
Dado empurrou Luana e ganhou o direito de passar quase 3 anos dormindo na prisão. Um exemplo para mostrar que no Brasil, a Lei Maria da Penha não nasceu para ficar no papel.
A minha indignação infelizmente não para por aí. Recebi uma convocação para comparecer à delegacia na última sexta-feira, 13. Achamos que eles queriam mais informações e fomos tranquilos. Chegando la, um policial muito grosso e agressivo me encaminhou para uma sala sem permitir que o meu marido me acompanhasse, mesmo sabendo que eu não falava francês muito bem. Na sala, dei de cara com o homem que me agrediu. Em nenhum momento soubemos que esse homem estaria lá, portanto, eu não estava preparada para fazer essa confrontação. Depois descobrimos na internet que eu poderia ter me negado a entrar, mas em momento algum recebi essa informação na delegacia.
Fui coagida pelo policial o tempo todo. Ele passou os primeiros 30 minutos fazendo perguntas só para mim, falando rápido e tentando me colocar contra a parede, para cair em contradição, enquanto eu chorava copiosamente. Ao homem, ele não dizia nada. Fui constrangida e tratada como se fosse a culpada. Até eu já estava me convencendo de que a errada fui eu por ter incomodado o andamento do “sistema” com uma denúncia assim, tão banal. Afinal, agressão que não quebra osso algum não é bem uma agressão, certo?
– Você subiu na bicicleta falando ao telefone depois que este senhor saiu com o carro?
– Sim, eu liguei para o meu marido e ele foi me guiando para dizer aonde eu deveria ir.
– Você sabia que é proibido falar ao telefone em cima de uma bicicleta?
———-
– Você gritou e agrediu o senhor com a sua bolsa?
– Sim, mas só depois que ele me deu um murro nas costas! Gritei por socorro.
– Por que você não saiu do local e ligou para a polícia então?
———-
– Por que você queria tanto que este senhor esperasse o seu marido no local?
– Por que eu não falo francês fluentemente.
– Esse foi o único motivo ou você esperava que o seu marido resolvesse o problema de outra forma?
———-
– Você disse a este senhor que se no país dele é permitido bater em mulher, no seu não é?
– Não, eu disse que eu não sei se aqui no país dele é permitido bater em mulher, mas que no meu não é.
– Você sabia que isso é racismo e você pode ter problemas?
– Eu não sou racista.
– Mas foi, porque este senhor é de origem arabe.
– Como é que eu vou saber de onde ele vem? Eu quis dizer que se aqui na França os homens batem em mulher, no Brasil não batem.
– Ainda assim, comentário racista.
———–
– Você sempre chora fácil como agora?
– Não, so quando alguém me agride na rua.
(Depois perguntou para o meu marido se eu era muito emotiva ou tinha sofrido algum trauma no Brasil porque choro “à toa”).
Não parece, mas EU fui agredida, EU prestei queixa, EU sou a vítima. Que tal perguntar para aquele senhor por que ele veio de carro atrás de mim, ou por que ele jogou o carro em cima da minha bicicleta, ou mesmo por que ele desceu do carro e me deu um murro sem que eu falasse nada, na frente da esposa e do filho pequeno?! Mas não, nenhuma dessas perguntas foram feitas ao agressor, que saiu impune dali. Eu saí revoltada.
Revoltada por não ter sido atendida por uma policial mulher, por ouvir que na França não é permitido bater em criança nem em mulher, mas que vejam so, eles batem – “acontece”. Que um simples murro nas costas não caracteriza agressão, que agora é preciso aguardar a decisão do juiz e que provavelmente “não vai dar em nada, no maximo uma multa por você ter jogado a bicicleta no chão e falado ao celular enquanto pedalava”.
Pensei muito antes de tornar público um acontecimento que me machuca tanto, mas acho importante mostrar que tudo na vida tem seu lado ruim, inclusive o primeiro mundo. Acho fundamental que todos saibam que a violência não é “privilégio” dos brasileiros. Decidi que falar no assunto é melhor que deixá-lo morrer. Tantas mulheres pensam o contrário e por isso, continuamos apanhando gratuitamente dentro de casa e nas ruas. Conto com a ajuda de outros blogueiros como a Lola (que prontamente aceitou espalhar a estoria), dos twitteiros e de todas as pessoas que, de alguma maneira, se indignam com qualquer tipo de violência no mundo. Sozinha do lado de cá do oceano, ainda estou perdida sem saber que caminho seguir para conseguir justiça. Só sei que calada não posso ficar. Algo bom precisa sair disso tudo.
Post publicado no blog Escreva Lola Escreva

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.