No primeiro grupo

Posso falar do complexo de vira-lata de novo? Sei que a autoconfiança do brasileiro está crescendo. Mas o referido complexo é arraigado, tem raízes profundas. Não será fácil erradicá-lo.

Por exemplo, o brasileiro não tem noção exata da dimensão do país. O Brasil é o quinto maior do mundo em termos de território e população. Quando se comparam os PIBs a taxas de câmbio de mercado, sua economia é a oitava do planeta, maior do que a do Canadá, da Rússia e da Índia. Isso em 2009. Com o crescimento de 2010, o Brasil deve subir no ranking.

Digo mais: só cinco países estão entre os dez maiores em termos de território, população e PIB (medido por paridade de poder de compra): EUA, China, Rússia, Índia e Brasil. Se os PIBs forem comparados a taxas de câmbio de mercado, apenas três países permanecem entre os dez maiores: EUA, China e Brasil. Posso dizer, leitor, que eu nunca, nem nos nossos piores momentos nos anos 80 e 90, perdi de vista essa realidade fundamental. Sempre me chocou a desproporção entre o Brasil e a percepção acanhada que o brasileiro tinha (ou tem) do país.

Certa vez, no fim da década de 1980, quando era do Conselho de Economia da Fiesp, aconteceu um episódio marcante. No entusiasmo dos meus 30 e poucos anos, defendia com ardor um posicionamento mais ativo do Brasil nas suas relações econômicas internacionais. Outro conselheiro, o empresário Luiz Eulálio Bueno Vidigal, num tom condescendente, disse: “Um dia – quem sabe? – o Brasil estará em condições de fazer o que o Paulinho quer.”

Aquilo me doeu. Tinha horror de ser tratado como uma espécie de Policarpo Quaresma, defensor de teses irrealizáveis. A mim, parecia óbvio que o Brasil tinha um potencial extraordinário – e que as elites brasileiras não estavam à altura do país.

Bem. Esse dia a que se referia Vidigal chegou, está aí diante de todos nós, numa evidência límpida e cristalina.

Digito essas frases com certa emoção. Para um economista da minha geração, com o meu modo de ver o país, foi uma travessia longa e tenebrosa – que ainda não acabou. Após a queda de Dilson Funaro, tivemos os melancólicos anos finais do governo Sarney. Em seguida, Fernando Collor de Mello. Depois, oito anos de Fernando Henrique Cardoso. O primeiro mandato de Lula, na sua maior parte, ainda foi dominado por cautelas exageradas.

Não nego que o país tenha feito progresso em diversas áreas nesse período. Houve feitos notáveis (por exemplo, a URV e a fase inicial do Plano Real; a política externa do governo Lula, já no primeiro mandato), mas o quadro geral era desalentador. Predominava o complexo de vira-lata.

No FMI, o peso relativo do Brasil foi caindo nesse período. Só em 2008, o país obteve aumento expressivo de quota e poder de voto, na reforma que conseguimos aprovar em abril daquele ano, mas que ainda não foi ratificada por um número suficiente de países.

O Brasil é atualmente o 18º no ranking do Fundo. Quando a reforma de 2008 for ratificada passaremos a 14º, ainda atrás da Arábia Saudita, do Canadá, da Holanda e da Bélgica. O próximo passo é colocar o Brasil na primeira divisão, entre os dez maiores quotistas do Fundo, em linha com o nosso peso. Isso poderá ser alcançado na negociação, em curso, de uma nova reforma de quotas. Ela poderá estar concluída até o fim deste ano ou início de 2011.

Negociação é eufemismo – está mais para luta de foice no escuro. A razão é que a importância do FMI aumentou muito desde 2008, com a crise mundial. O volume de recursos terá triplicado, para cerca de US$750 bilhões, quando se completar a implementação da reforma de 2008 e dos mecanismos de empréstimo decididos no G-20 em 2009. Quando a nova reforma de quotas estiver concluída, os recursos do Fundo poderão aumentar para cerca de US$1 trilhão. Com isso, acirrou-se dramaticamente a disputa pelo poder dentro da instituição. Os europeus, por exemplo, quase todos super-representados no FMI, jogam pesado para preservar suas posições privilegiadas.

Temos chance de sucesso nesse embate? Não tenho dúvida de que sim. Só não seremos bem-sucedidos se não dermos prioridade à questão. Ou se nós, negociadores brasileiros, tivermos uma recaída no velho complexo de vira-lata.


Paulo Nogueira Batista Jr. é economista

Artigo originalmente publicado em O Globo

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