Quando a vitória da continuidade significa progresso

Todas as análises e estudos e projeções das inumeráveis e diversas sondagens de opinião que nos assolam desde 2009, indicam, neste final de agosto, quando os Institutos especializados começam a corrigir seus erros táticos (digamos assim), que o pleito presidencial será resolvido no primeiro turno, e que as urnas consagrarão a continuidade político-administrativa, tanto no plano federal quanto, com mínimas e irrelevantes exceções, nas disputas estaduais. Também em poucos estados as decisões caminhariam para uma segunda consulta. Por consequência, o mapa eleitoral estaria sendo nacionalmente pintado de vermelho (candidatos pró-Dilma venceriam em 15 Estados e no Distrito Federal), a cor com a qual a grande imprensa identifica a coalizão de partidos que apoia a candidata presidencial situacionista, coalizão que se reproduz, também com poucas variáveis, nas sucessões estaduais. Estima-se mesmo que essa conformação partidária (PT – PMDB – PcdoB – PDT – PRB – PR – PSB – PSC – PTC – PTN), – heterodoxa política e eticamente, diga-se de passagem – deverá obter tranquilizadora maioria de peças na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, o incômodo calcanhar de Aquiles da administração findante.

A confirmar-se o prognóstico, essa será mais uma novidade oferecida pelas eleições de 2010, rompendo, aliás, com a tradição republicana escrita após 1946, quando a regra – apontada por muitos como característica salutar de nosso presidencialismo – vinha sendo a de precatar-se o eleitorado ao negar maioria parlamentar ao presidente por ele consagrado nas mesmas eleições. Daí esse nosso regime haver sido batizado de ‘presidencialismo de coalizão’, pois, impossibilitado de governar contando apenas com a base parlamentar com ele eleita (e teoricamente comprometida com seu projeto de governo), todo presidente é obrigado a conquistar (seja-nos permitido o eufemismo) aliados no Congresso, isto é, a negociar apoios com as tendências que combateram a proposta de sua candidatura e de governo, ao evidente preço de concessões (inclusive programáticas) que não se encerram na partilha do governo. Dois presidentes, no regime pós-46, intentaram romper com esse determinismo. Não concluíram seus mandatos. Lula, que resistiu a tal mandamento na sua primeira administração, conheceu em 2005 a ameaça do impeachment. Gato escaldado, tratou de corrigir a imprudência já antes do início do segundo mandato e na campanha pela sua sucessão (2010) se antecipou aos percalços montando amplíssima base de apoio à sua candidata, base essa que, anunciam seus prógonos, deverá acompanhá-la no governo, pelo menos ab initio… O ‘presidencialismo de coalizão’ determina esse tipo de governo, saldando-se o transformismo governamental como preço da governabilidade.

Outras antecipações podem ser intentadas deste pleito ainda por ferir-se, e entre elas começamos com a emergência de um pluralismo partidário revisitado. Se ainda não foi possível, como tanto desejam as forças conservadoras, reduzir a disputa eleitoral à alternância programada de dois partidos siameses (modelo de que é paradigma o sistema norte-americano), o futuro próximo de nosso quadro partidário tenderia à conformação de constelações partidárias com seus respectivos planetas regentes e satélites. Agente dessa política foi a vitoriosa estratégia do presidente Lula quando – contrariando velhos aliados e a sugestão das sondagens – conseguiu transformar a disputa eleitoral em uma consulta plebiscitária, convocando o eleitorado a julgar seu governo. Sem política, a oposição rendeu-se ao círculo de giz caucasiano da discussão cingida ao inventário dos méritos do governo, e, sem projeto alternativo, renunciou à discussão de modelos, mas renunciou acima de tudo e essencialmente ao seu papel de oposição, desde cedo assumido pelos grandes jornais e revistas, que passaram a pautar o candidato oposicionista. Não houve, por exemplo, o debate entre neoliberalismo e intervencionismo, não se discutiu o papel do Estado, nem as políticas de distribuição de renda, ou o papel do Brasil no cenário internacional etc.

O desafio recusado pela oposição foi preenchido com inusitado vigor pelos grandes meios de comunicação, pela direita. Sem apetite para o debate político-ideológico, de novo retomou as velhas teses do udenismo lacerdista, a denúncia do extra-política, do escândalo; impossibilitadas de desmontar os números do desempenho governamental, oposição e meios de comunicação, como uma unidade, procuraram o caminho do denuncismo. Mas, sem qualquer eficácia, reiterando assim a distância crescente entre a opinião nacional e a vontade das empresas jornalísticas. Este é, aliás, tema que certamente enriquecerá o debate acadêmico pós-eleição. Referimo-nos ao crescente descolamento da grande imprensa dos sentimentos do cidadão-médio. Mesmo relativamente à classe-média, poder-se-á dizer que o reacionarismo de certas camadas não é necessariamente um produto da cantilena mediática, mas, ao contrário, que essas camadas procuram determinados veículos para poder ouvir seu próprio discurso. A propósito dessa nossa imprensa, é lamentável registrar, ainda, seu apego ao golpismo, a que pareceu aderir o próprio candidato oposicionista, ele mesmo uma vítima de 1964, distante época em que civis derrotados nas urnas procuravam nos quartéis, com relativo êxito (1954, 1955, 1961, 1964) a correção para os erros do eleitorado.
A grande imprensa, tal qual o antigo udenismo (renascido no novo PSDB) não compreende que o jogo democrático também implica derrotas. Este triste aspecto de nossa pobreza política (que já emergira no episódio conhecido como ‘mensalão’) ficou mais evidente no lamentável episódio da criminosa quebra de sigilo fiscal de mais de uma centena de cidadãos, entre os quais próceres políticos da oposição, crime perpetrado dentro da Receita Federal. Paralelamente à condenação do ilícito, imprensa e oposição tentaram, de novo em vão, alterar as tendências do eleitorado, apelando, até, para a tentativa de cassação imotivada de uma candidata com mais de 50% da aprovação do eleitorado.

De uma forma e de outra, seja a competência estratégia do presidente Lula (o grande vencedor), sejam os erros de seus adversários, o fato é que o pleito assim estreitou-se desde o primeiro momento na disputa entre quem era mais competente para dar continuidade à obra do governo Lula. A candidatura de oposição prometia simplesmente a mudança de atores e quando muito a promessa de fazer mais. Nos seus momentos criativos prometia moralizar os costumes. Enquanto isso, a candidatura situacionista oferecia o avanço na continuidade, continuidade garantida com a entrega do bastão a alguém que se identificava com os bons resultados da administração por dela haver participado, liderando-a. Assustada com o prestígio do presidente e da consagradora aprovação de seu governo, a oposição aceitou o determinismo da continuidade. Tentou apresentar-se como ‘a continuidade mais competente’. Não conseguiu.

Com o fracasso da tentativa de disputar com o situacionismo a continuidade (o candidato da oposição chegou a inaugurar seu programa eleitoral na televisão com a imagem do presidente Lula) o candidato do PSDB – contrariando sua biografia e suas próprias convicções –, mas atendendo às imposições de seus apoiadores, entre eles com destaque os grandes meios de comunicação, tentou retomar o caminho de um moralismo arcaico e de um reacionarismo fora de tom e estranho no tempo, assumindo o discurso de uma direita pré-derrotada. Tampouco funcionou. Foi assim que Serra, um progressista no PSDB, ex-presidente da UNE e ex-exilado no Chile de Allende, terminou, nas eleições, a simbolizar uma ameaça de retomada do conservadorismo. De outra parte, por força também desse movimento da campanha oposicionista – mas não apenas por isso, pois é preciso considerar igualmente sua biografia e a correlação de forças que a apoia –, a candidatura situacionista, com a bandeira da continuidade, terminou por transformar-se na promessa de avanço, ao simbolizar a resistência ao ‘retorno do atraso’.

Continuidade (ou avanço) leia-se agora como a consagração da emergência das massas; como mudança (ou retrocesso), leia-se o retorno das teses do neoliberalismo. Mas, em face do modelo plebiscitário de disputa imposto pelo presidente Lula, reduzido o diálogo eleitoral a uma concorrência numerológica, não se promoveu o debate entre modelos de governo e de política, e isso empobreceu letalmente a disputa.

A campanha eleitoral ainda corria quando o presidente Lula – que não renunciará à intervenção política no pós-mandato – anunciou seu projeto de liderar a formação de uma grande frente de partidos de esquerda, tendo, evidentemente, o seu PT como astro-rei. É a primeira constelação de partidos às quais nos referimos linhas acima. Dela fariam parte, além do PT, o PSB, o PDT, o PCdoB e o PRB – e assim ficamos sabemos que é de esquerda o partido do bravo vice-presidente José Alencar. Podemos supor que outra ‘constelação’ certamente será formada tendo como epicentro o PMDB, se este partido, herdeiro do espólio do DEM, puder constituir-se como liderança de centro. Inevitavelmente, a terceira constelação será liderada pelo PSDB, cujos rumos políticos, com a derrota de José Serra, serão ditados pela disputa pelo seu comando a ser travada entre Alckmin e Aécio, até aqui o grande vencedor nas hostes da oposição. Será a disputa entre a direita Opus Dei e a corrente liberal. Dependendo do desfecho, poderá o PSDB liderar a centro-direita. Quais serão seus satélites, isso será determinado pelo processo político. Mas certamente, qualquer que seja o rumo, lá estará o PPS. Não é possível, com o dados de hoje, pensar numa aglutinação PSTU, PSOL, PCB e PCO, tanto quanto ainda é muito cedo para identificar a organização partidária da constrangida direita brasileira, após a sangria do DEM. A se confirmarem essas antecipações, é possível prever o fim das polarizações PT/PSDB, São Paulo/Brasil, ainda que esta hipótese não esteja nos cálculos do presidente Lula. Por enquanto, ao pensar na sua frente de esquerda, tendo como modelo a experiência da Frente Ampla do Uruguai, seu objetivo é blindar o futuro governo ante o projeto de hegemonia do PMDB.

Sem discutir o número de siglas que abarrotam o processo eleitoral – que a Justiça Eleitoral e as forças conservadoras prefeririam o mais asséptico possível, se possível sem campanha – não há dúvida entre os comentaristas sobre a importância do pluralismo partidário para a democracia representativa, seja por ensejar, pelo menos teoricamente, a possibilidade de pronunciamento de um maior número de tendências e opiniões, seja por ensejar um maior número de candidatos oferecidos à escolha do eleitorado. Em nome de tudo, até de causas justas, a cada legislação, a cada ano, e a cada decisão do TSE, mais se limitam os espaços das campanhas, cada vez mais curtas, assim como são reduzidos o horário eleitoral gratuito (uma das mais importantes e fulcrais conquistas da democracia brasileira), os comícios, e mais isso e mais aquilo. Não conhecemos uma só iniciativa recente visando a aprofundar o debate democrático ou a participação popular; e, na ausência da campanha, é menor a motivação do eleitorado, encarecendo a campanha, aumentando a necessidade de compra de colégios eleitorais, da ação de cabos eleitorais e de propaganda na imprensa gráfica. Na medida em que este pleito deverá ser aquele que contou com a menor participação popular, nas últimas décadas, já é o mais caro de nossa história.

O controle do processo eleitoral pelo poder econômico é o anúncio da falência da democracia representativa.

 


Roberto Amaral é  ex-Ministro da Ciência e Tecnologia e Diretor-geral da Alcântara Cyclone Space-ACS. Escritor e professor universitário


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