O ataque à CLT, o “projeto Volks” e a incrível metamorfose sindical

Em artigo recente, diz o procurador do trabalho Rafael de Araújo Gomes: “… uma Central Sindical envolvida com a flexibilização de direitos não será mais uma Central Sindical. Será um balcão de negócios, a maior parte dos quais inconfessáveis”.

Com efeito, o mais aberrante no “projeto Volkswagen”, advogado pelo presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, com o nome de Anteprojeto de Lei do Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico, é que, 69 anos após a CLT, o que ele propõe não é uma ampliação nos direitos que os trabalhadores já conquistaram há sete décadas, mas uma redução desses direitos – a rigor, a anulação dos direitos garantidos pelas leis há quase 70 anos.

Anteriormente, sobre o mesmo projeto, observamos que, depois de décadas acusando a CLT de ser uma cópia da “Carta del Lavoro”, de Mussolini (uma acusação que somente revelava a ignorância de quem a fazia), agora acusam Getúlio de ser excessivamente parcial a favor dos trabalhadores – ou, quem sabe, esquerdista…

Um exemplo está em documento de setembro último, em que se endossa a consideração: “O sistema atual é indutor do contencioso e estimula o conflito trabalhista” e se coloca como “primeira diretriz” da “modernização trabalhista” o “estímulo ao diálogo social” (cf. Plano Brasil Maior, “Diagnóstico e Diretrizes de Relações do Trabalho”, pág. 24). Terrível “sistema” (a CLT), que estimula a luta dos trabalhadores, ao invés de estimulá-los a se conformar com os lautos salários que os patrões oferecem a eles (o próprio documento destaca que “70% dos novos empregos recebem até 2 salários-mínimos”).

O presidente Lula deve ser algum réprobo, por ter liderado a luta dos trabalhadores – e, portanto, estimulado o “conflito trabalhista”. Aliás, é exatamente o que diz um órgão muito progressista, o Estadão, ao elogiar os “novos dirigentes” do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em editorial publicado, inadvertidamente, na data em que se comemora a Queda da Bastilha:

“… o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC sofreu uma metamorfose nas três últimas décadas. Os dirigentes mais antigos, como Lula, Vicentinho, Jair Meneguelli e Luís Marinho, que confrontaram as montadoras (…), deram a vez a dirigentes realistas. (…) os novos líderes dos metalúrgicos do ABC substituíram o confrontacionismo de seus antecessores por atitudes cooperativas e relações de parceria. Não só aceitaram o sistema de banco de horas, como também negociaram com as montadoras a flexibilização da legislação trabalhista, em matéria de férias, tempo de descanso para almoço e licença-maternidade” (OESP, “O futuro dos metalúrgicos”, 14/07/2012).

Realmente, nada mais longe da gestão de Lula, e outros líderes, à frente do Sindicato dos Metalúrgicos, que o germanófilo conformismo do sr. Nobre e sua defesa do “projeto Volks” – como, aliás, mostra o Estadão, ao apoiá-lo contra seus combativos antecessores.

No documento do “Plano Brasil Maior”, diz-se que há um “consenso” em que “há muito desrespeito ao que foi acordado em negociações coletivas (insegurança jurídica para ambos os lados), e por vezes os poderes públicos do trabalho não ratificam o acordado” (doc. cit., pág. 23).

“Insegurança jurídica” passou a ser o berro de todo fariseu que quer passar ou manter uma injustiça. Desde quando, em nome de uma suposta “segurança jurídica”, a função da Justiça é manter ou estabelecer injustiças? Ou, dito de forma diferente, desde quando a injustiça merece garantia de “segurança jurídica”? Em qualquer sistema injusto – e o nosso ainda é, fundamentalmente, injusto – quem quer “segurança jurídica” são aqueles que se beneficiam da injustiça. Tanto isso é verdade que nenhum desses heróis lembrou a insegurança jurídica causada pelo ataque à CLT. Só vale “segurança jurídica” para os bancos, multinacionais, ladrões do patrimônio do povo e parasitas do Tesouro.

Graças aos céus – e à luta dos trabalhadores, que conquistou a legislação trabalhista – a Justiça do Trabalho (os “poderes públicos do trabalho”) não ratifica tudo o que é acordado. A lei deve e tem de prevalecer sobre “negociações” atomizadas porque é evidente que a negociação trabalhista não é uma negociação entre iguais, mas uma negociação em que um dos lados tem poder econômico (e político, inclusive para usar a polícia) imensamente maior que o outro lado. Além disso, é óbvio que a prevalência do “negociado” sobre a lei equivale à abolição da lei, ou seja, equivale a não ter lei alguma.

Não é um problema abstrato ou que ainda vai surgir. Diz o procurador Rafael de Araújo Gomes, sobre sua própria experiência:

“… em 2008, realizei em conjunto com a colega Larissa Lima uma audiência pública (…) no Município de Patos de Minas (…). A necessidade de tal audiência pública se fez óbvia ante a descoberta da proliferação, em toda a região, de acordos coletivos firmados com grandes fazendeiros que previam, entre outras coisas, que: a) o custo das ferramentas de trabalho (enxada e rastelo, por exemplo) seria suportado pelos trabalhadores rurais; b) o empregador era dispensado de fornecer na fazenda água potável e fresca; c) seria considerado como falta o dia em que o empregado não apresentasse a produtividade esperada pelo empregador, d) não haveria limitação ao número de horas extras diárias durante a colheita; entre outros absurdos.” (cf. Rafael de Araújo Gomes, “O projeto de flexibilização trabalhista da CUT: o que é isso, companheiro?”, pub. Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho – ANPT).

Patos de Minas, no Triângulo Mineiro, é uma das 200 maiores cidades do país e uma das 20 maiores de Minas Gerais. Portanto, está longe de ser o fim do mundo. Para tirar qualquer dúvida a esse respeito, continua o procurador:

“Dou agora exemplos mais recentes, deste ano de 2012 e da rica região do interior de São Paulo que engloba Araraquara e São Carlos, onde me deparei com diversos acordos, celebrados por sindicatos de trabalhadores de categorias tradicionalmente fortes (alguns deles filiados à CUT), instituindo a possibilidade de supressão de anotação da jornada de trabalho, o desconto salarial por horas negativas lançadas no Banco de Horas, a redução do horário para descanso e alimentação para apenas vinte minutos e a sonegação de verbas rescisórias, ente outros problemas.” (cf. art. cit.).

Araújo Gomes nota que o conteúdo do “projeto Volks” é o mesmo do projeto de lei nº 5.483/2001, de Fernando Henrique (“prevalência do negociado sobre o legislado, autorizando sindicatos e empresas a restringir ou eliminar direitos”). Tanto é verdade que foi exatamente isso que o sr. Nobre fez – adivinhe o leitor em acordo com que empresa, pois é, com a Volkswagen – ao trocar ilegalmente, contra a CLT, o direito de amamentar das mães trabalhadoras por mais oito dias de licença-maternidade.

Como analisa o procurador Rafael de Araújo Gomes:

“… enquanto o projeto de FHC não autorizava a flexibilização de normas de saúde e segurança do trabalho, necessárias para a preservação da vida e da saúde dos trabalhadores e para a prevenção de acidentes, o Anteprojeto (…) autoriza flexibilizar inclusive isso.”

Realmente, o projeto tucano – talvez defendendo-se antecipadamente contra a oposição do PT no Congresso – excluía negociações fora da lei quanto às normas de saúde e segurança do trabalho. No atual, nem uma palavra sobre o assunto. Por consequência:

“… a aplicação da Norma Regulamentadora n° 18 do Ministério do Trabalho e Emprego, por exemplo, que prevê normas de segurança para o setor da construção civil, poderia ser em todo ou em parte afastada através de um acordo coletivo. … certa empresa poderá ameaçar realizar demissões alegando não ter condições financeiras para instalar proteções coletivas em máquinas como prensas e serras, cujo investimento por vezes é alto. Não se trata de situação hipotética, casos assim são enfrentados diariamente pelo Ministério Público e pela Auditoria do Trabalho. Prevalecendo a proposta (…), o sindicato poderá celebrar acordo com a empresa eximindo-a do cumprimento dessa exigência legal, e assim ‘salvando os empregos’. Pergunto-me, entretanto, se tal resultado constituirá compensação à altura para os dedos, mãos e braços que serão decepados ou esmagados a seguir”.

E, leitores, ficamos aqui por hoje, em respeito ao vosso – e ao nosso – estômago.


Carlos Lopes é diretor de redação da Hora do Povo, na qual o artigo foi publicado originalmente.

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