A seca e o Bolsa-Família

A atual seca no Nordeste brasileiro apresenta uma intensidade equivalente à que ocorreu entre 1982 e 1984. Há 30 anos não acontecia uma seca com tal amplitude no semiárido. Eu morei na cidade pernambucana de Petrolina e trabalhei como pesquisador em todo o sertão, pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), entre 1980 e 1988.

Vivi de perto a dura realidade dos períodos de seca. Agora, contudo, uma combinação virtuosa de diversas ações sociais está obtendo um resultado inédito na proteção dos mais pobres diante dos impactos de dois anos de estiagem. Mais de 10 milhões de pessoas, em cerca de 1.300 municípios, estão atingidas pela seca.

Ao contrário do que ocorria no passado, não houve ondas de saques, nem deslocamentos de flagelados, nem a organização de frentes de trabalho pelo governo, nem a invasão de cidades ou ataques a armazéns em busca de comida. Não existem campanhas na televisão para arrecadar alimentos para as vítimas da estiagem. Antes tudo isso se passava, até mesmo em secas de menor intensidade. Cerca de 1,2 milhão de pessoas foram alistadas em frentes de trabalho em 1999! Hoje, não. Por quê?

O Programa Bolsa-Família está garantindo a alimentação de quase todas as famílias no semiárido nordestino. Com esses recursos financeiros as pessoas adquirem alimentos básicos no comércio local. E há uma sinergia com outros programas, como a construção de mais meio milhão de cisternas entre 2003 e 2013.

Essas cisternas vieram somar-se ao programa inicial de implantação de cisternas rurais da Cáritas Brasileira e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A água das chuvas é recolhida nos telhados das construções, passa por um filtro e é armazenada numa cisterna de alvenaria, protegida da contaminação e da luz. Essa água de qualidade fica disponível para o uso das famílias, ao lado da casa.

O fornecimento de água de qualidade à população rural e nas pequenas cidades foi ampliado pelo Programa Água para Todos e pelas interligações de adutoras. E é complementado, ainda, por outras ações, como a Bolsa Estiagem, o crédito emergencial, os
leilões de milho, a recuperação de poços, a consolidação de polos de irrigação e as ações estruturantes (construção de adutoras e novos sistemas de abastecimento de água).

Existe um Comitê Integrado de Combate à Seca. A coordenação do emprego de carrospipa para fornecer água para o consumo humano não é local, é do Exército Brasileiro. Os carros-pipa ganharam eficiência, porque enchem cisternas, e não apenas latões. A cisterna torna-se uma reserva de água, inclusive para os vizinhos. Mais de 400 mil cisternas estãocadastradas e georreferenciadas, o que aprimora o seu uso e a implantação de novos equipamentos. São mais de 4 mil caminhões mobilizados na distribuição de água, embora eles ainda só atendam 50% dos municípios em risco climático.

Entre 2001 e 2011, a renda na Região Nordeste cresceu 73%, enquanto na Região Sudeste a taxa foi de 46%. O aumento da renda e da segurança alimentar no semiárido nordestino é um fato novo, aliado à redução da incidência de enfermidades, graças ao acesso à água potável e ao trabalho da Pastoral da Criança. Situações seculares de dominação estão sendo rompidas e poucos avaliam o alcance social e político deste novo cenário.

Hoje em dia, quem mais sofre com a estiagem são os rebanhos, sobretudo os dos médios e grandes produtores. Reportagens televisivas e jornais mostram o gado morrendo e o prejuízo de agricultores, em geral, bem alimentados. Forragem não se compra em supermercado, como arroz e feijão, com os recursos de programas sociais. Medidas emergenciais como distribuir milho e cana-de-açúcar para forragem são caras e difíceis de realizar. Não há como atender milhões de agricultores espalhados por centenas de milhares de quilômetros quadrados. A solução está na mudança progressiva dos atuais sistemas de criação de animais.

Como no inverno em países temperados, o período seco exige a formação de estoques de forragem sob a forma de feno, silagem ou em áreas preservadas do acesso animal. A Embrapa, as universidades e os sistemas estaduais de pesquisa desenvolveram diversas
alternativas para garantir ou complementar a alimentação dos rebanhos no período seco.

Existem plantas forrageiras resistentes à seca, tecnologias e suplementos para ampliar a digestibilidade do material seco consumido pelos rebanhos e diversas alternativas com árvores e arbustos forrageiros, nativos e exóticos. Alguns produtores já utilizam essas técnicas. Sua adoção mais ampla, no entanto, depende de uma política eficaz de inclusão produtiva, de difusão tecnológica e de assistência técnica, atualmente inexistente.

A cisterna rural, mesmo no pior ano de seca, consegue armazenar água suficiente para as necessidades das famílias. Da mesma forma, outras tecnologias da pesquisa agropecuária podem garantir água para os animais. E até para as culturas, por meio da chamada irrigação de salvação e da cisterna calçadão, por exemplo. Está na hora de inovar em matéria de tecnologia agrícola no semiárido. E também de repensar o sistema de assistência técnica aos produtores rurais.

O crescimento da renda e da organização dos produtores permite imaginar novos cenários para a redução da pobreza rural no sertão. Está demonstrado: a renda rural depende muito mais de tecnologia do que da terra. O futuro está na incorporação de novas técnicas agrícolas e na inserção dos agricultores em cadeias produtivas rentáveis, como ocorreu em quase todo o Brasil.

Como diziam os cangaceiros, o futuro fica em cima do futuro, e não embaixo do passado.


Evaristo Eduardo de Miranda é agrônomo, doutor em Ecologia e pesquisador da Embrapa. Artigo originalmente publicado em “O Estado de São Paulo”.

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