Antes de tudo, é preciso esclarecer não se tratar de revisão da lei nº 6.683/79, a Lei da Anistia. Mas, dar interpretação autêntica ao disposto no art. 1º, § 1º da referida lei, segundo a qual declaram-se conexos aos crimes políticos, objeto da anistia concedida pela lei, “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
É no sentido de dar nova interpretação ao que dispõe o art. 1º § 1º da lei que apresentei o projeto de lei 573/2011, que define no art. 1º que “não se incluem entre os crimes conexos, definidos no art. 1º § 1º da lei nº 6.683/1979, os crimes cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos”.
A aprovação desse projeto é condição para efetivo cumprimento à sentença condenatória do Estado brasileiro, proferida em 24/11/2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim, é dever do Brasil cumprir integralmente a decisão.
Ao julgar a ação proposta pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que questionava se a lei nº 6.683/1979 de fato anistiou agentes do Estado que cometeram crimes de tortura, assassinatos e desaparecimentos durante o regime militar (1964-1985), o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu manter a interpretação atual da Lei da Anistia e impedir que os responsáveis por crimes contra opositores políticos sejam processados, julgados e punidos.
O relator do processo, o então ministro Eros Grau, deu parecer contrário à revisão da lei, argumentando que ela teria sido “amplamente negociada”. Convém lembrar, no entanto, as condições em que tal acordo se deu. Os militares ainda tinham o controle do poder e a sociedade civil dava os primeiros passos na reconstrução da democracia no país.
Por entender a imperiosa necessidade de reinterpretação da Lei da Anistia para que se conheça a verdade sobre os crimes da ditadura e os responsáveis por eles não fiquem impunes, apresentei o mencionado projeto de lei, que se encontra na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, aguardando votação.
No momento, ocorre intensa discussão da matéria pela sociedade, particularmente pelos setores mais diretamente interessados, os Comitês Memória, Verdade e Justiça, criados e funcionando na maioria dos Estados brasileiros, além das Comissões da Verdade das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, que se manifestam favoravelmente à aprovação do projeto de lei.
Recentemente, alguns membros da Comissão Nacional da Verdade também se declararam favoráveis à reinterpretação da Lei da Anistia, para que os crimes cometidos por agentes do regime militar sejam punidos. Tal manifestação representa um avanço, considerando-se que a lei nº 7376/2010, que criou a comissão, limita seus objetivos ao resgate da memória e revelação da verdade histórica sobre as graves violações aos direitos humanos ocorridas no período da ditadura militar.
Assim, fica claro que esses limites e determinações legais precisam ser superados, com vistas a possibilitar a justiça de transição. Para tanto, se impõe a aprovação do projeto de lei 573/2011, que dá interpretação autêntica à Lei da Anistia.
A mesma instituição –Congresso Nacional– que aprovou a lei nº 6.683/1979, numa conjuntura e correlação de forças adversas, tem o poder e a prerrogativa de aprovar um outro diploma legal que atenda aos reais anseios da sociedade brasileira, ou seja, ver completado o processo de redemocratização e a plena consolidação da democracia no país.
Luiza Erundina é deputada federal pelo PSB-SP. Foi prefeita de São Paulo (1989 a 1992). Artigo originalmente publicado na “Folha de S.Paulo”.