Em comemoração aos 10 anos de vigência da Lei Maria da Penha (completados neste domingo, dia 7), o Portal CTB fez uma entrevista por e-mail com a secretária da Mulher Trabalhadora da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Ivânia Pereira.
A sindicalista sergipana, primeira mulher eleita para dirigir o Sindicato dos Bancários de Sergipe, disse que a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha (saiba mais aqui), “criou mecanismos tanto para punir quanto para conter a violência doméstica e familiar”, além de estabelecer “medidas de proteção”.
Ela falou também sobre a Lei 13.104/2015 – Lei do Feminicídio – com essa lei o assassinato de mulheres pela condição de ser mulher virou crime hediondo.
Ela ressaltou o papel que a escola pode ter num país como o Brasil. “Imaginemos se isso (questão de gênero) fizesse parte dos currículos das escolas. Certamente construiríamos um novo país”.
Leia a íntegra da entrevista abaixo:
Em 10 anos de vigência da Lei Maria da Penha, o que mudou no enfrentamento da violência contra a mulher?
Ivânia Pereira: Há exatos 10 anos, a violência contra a mulher deixou de ser naturalizada e passou a ser crime. Isso é grandioso. Ou seja, apesar das barreiras para a completa implementação da Lei Maria da Penha, temos muito que comemorar. Essa legislação é um marco divisor na luta histórica contra a violência doméstica, física e psicológica, contra as mulheres. A lei criou mecanismos tanto para punir quanto para conter a violência doméstica e familiar. Estabeleceu medidas de proteção.
Outro fenômeno pós Lei Maria da Penha é a conscientização por parte da sociedade contra a violência às mulheres e a ampliação das denúncias. A criação da lei representa hoje um certo consenso na sociedade brasileira para o enfrentamento da violência contra a mulher. Além disso, ressaltamos o fato de que a legislação foi alvo de intensa campanha de divulgação, tanto dos meios de comunicação como das instituições governamentais e não governamentais. Segundo pesquisa do Instituto Patrícia Galvão, 98% da população conhece a Lei Maria da Penha, sendo, portanto, a lei mais conhecida do país.
Nesse contexto, a Lei do Feminicídio pode ser vista como um complemento da Maria da Penha?
IP: Com a Lei do Feminicídio, o assassinato de mulheres passou a ser crime hediondo. A pena foi aumentada de 20 para 30 anos para quem for condenado por feminicídio.
Apesar de alguns setores considerarem uma lei anticonstitucional, por punir com mais rigor o assassinos do sexo masculino, essa legislação representa avanços no combate à violência contra a mulher. Ele evidencia que existem tipos de violência aos quais as mulheres são submetidas pelo simples fato de serem mulheres. Ou seja, reconhece que existe violência de gênero no Brasil e que esse é um problema a ser combatido pelo Estado.
Segundo o Mapa da Violência 2012: Homicídios de Mulheres no Brasil, divulgado pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-americanos (Cebela) e pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), aponta que, somente no ano de 2011, mais de 70 mil mulheres vítimas de violência foram atendidas pelo SUS – 71,8% dos casos ocorridos em ambiente doméstico. De acordo com o estudo, duas em cada três pessoas atendidas no SUS em razão de violência doméstica ou sexual são mulheres e, em 51,6% dos atendimentos, foi registrada reincidência no exercício da violência contra a mulher.
O estudo comprova com números os efeitos positivos da lei. A taxa de homicídios de mulheres dentro de casa era de 1,1 para cada 100 mil habitantes, em 2006, e de 1,2 para cada 100 mil habitantes, em 2011. Já as mortes violentas de homens dentro de casa passaram de 4,5 por 100 mil habitantes, em 2006, para 4,8, em 2011. Nesse caso, estão incluídos vários fatores, além de violência doméstica.
Mesmo com todos as políticas públicas de atendimento às vítimas, das leis punitivas e de várias campanhas de orientação e de formas de denunciar mais facilmente os agressores, a violência de gênero continua marcante em nossa sociedade. O que mais precisa ser feito?
IP: O país ainda precisa avançar muito na melhoria da rede de proteção à mulher vítima de violência. Existe deficiência em centros de referência, casas abrigos para as mulheres em situação de violência e risco de morte, assim como programas de reinserção no mercado de trabalho, uma vez que boa parte dessas mulheres desenvolvem relações de dependência econômica com seus agressores.
Mesmo quando ela consegue chegar à Justiça, a solução do problema recai sobre ela mesma. Isso ainda precisa melhorar muito.
A ideologia do patriarcado resiste às mudanças dos tempos e tenta impedir maior participação das mulheres na vida do país, o que fazer?
IP: Para enfrentar o problema da violência contra a mulher é essencial que os homens também conversem com outros homens na acepção de ser contra os valores machistas e ideias de posse sobre as mulheres. Um dos elementos que ajuda a reproduzir a cultura da violência contra a mulher, se dá nas conversas em uma mesa de bar e defendem o machismo e o sentimento de posse.
Como são conceitos forjados histórica e culturalmente, para mudar não se exige um trabalho mais abrangente?
IP: O direito de escolha da mulher não dá ao homem o direito de matá-la, agredi-la, humilhá-la. Esta é na verdade a grande úlcera da sociedade. É o que chamamos de machismo.
Por mais que se tenha políticas de Estado absolutamente fortes, convincentes e que estruturem o enfrentamento da violência com punição aos agressores; ainda que existam campanhas fortes, prevalece bastante a cultura de que ‘a mulher é minha propriedade’ e ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’. É preciso mostrar que a mulher não é propriedade de ninguém, a mulher tem direito a escolhas, direito de querer acabar uma relação ou não iniciar uma relação.
Ainda se mata, se espanca e se estupra muito no Brasil, o que a educação pode fazer para melhorar essa situação?
IP: Para definir vida saudável, Sarlet (2001) utiliza-se dos parâmetros fornecidos pela Organização Mundial da Sa&u
acute;de (OMS), quando se refere a um completo bem-estar físico, mental e social, parâmetro este que, pelo seu reconhecimento amplo no âmbito da comunidade internacional, poderia igualmente servir como diretriz mínima a ser assegurada pelos estados.
Neste sentido a violência é definida pela OMS como uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.
Imaginemos se isto fizesse parte dos currículos das escolas. Certamente construiríamos um novo país.
As mulheres ainda ganham menos do que os homens, são as primeiras a ser demitidas e as últimas a ser contratadas, como o movimento sindical reage a isso e como as mulheres são tratadas no movimento sindical?
IP: A luta da mulher por espaços nos sindicatos é a sua própria batalha por afirmação na sociedade. Relegadas no passado ao papel de “dona de casa”, seu ingresso no mercado de trabalho é recente – considerando o tempo histórico – daí as dificuldades, aos poucos vão sendo superadas, de assumirem tarefas de mais responsabilidade e comando. Entretanto este não um papel apenas das mulheres.
Por sua entrada tardia no plano da política e no mercado de trabalho, a participação da mulher em cargos máximos nos sindicatos, movimentos sociais e estudantis, e partidos políticos ainda é reduzida, situa-se ao redor de 20%. Mais recentemente, foi introduzida na legislação eleitoral a política de quotas que reserva no mínimo 30% dos cargos eletivos às mulheres. Essa medida, festejada por alguns e criticada por outros, que a consideram discriminatória, vem sendo assumida por alguns sindicatos e centrais sindicais.
Propor políticas de gênero exige, portanto, estabelecer o sentido das mudanças que se pretende operar e, também, o alcance de seu caráter emancipatório (SOUZA, 1994), pois, para que as desigualdades de gênero sejam combatidas no contexto das desigualdades sociais, é necessária a concretização da justiça de gênero (SILVEIRA, 2004). Isto deixa claro que o princípio da igualdade de salário, independentemente de raça ou cor, sexo, idade ou estado civil, assegurado pelo artigo 461 da CLT e pelo § XXX do artigo 7º da Constituição Federal, no Brasil está sendo desrespeitado e a justiça não se faz.
Com o afastamento – sem crime de responsabilidade – da presidenta Dilma e a presença do governo golpista a situação pode piorar?
IP: Não temos dúvida. Esse governo interino e golpista é formado por brancos, ricos e machistas. E não apenas para as mulheres. Para o conjunto da classe trabalhadora, a elite que está dirigindo o nosso país traz desesperanças: reforma da Previdência, o desmonte do SUS (Sistema Único de Saúde), a transformação da Secretaria das Mulheres em mera Diretoria ligada ao Ministério da Justiça. Dessas medidas, tememos profundamente que a própria Lei Maria da Penha reduza sua força com o PLC (Projeto de Lei da Câmara) 07/16 (veja aqui). Nesse esse projeto, está previsto, por exemplo, que as delegacias de polícia possam legislar sobre medidas preventivas, tirando o Judiciário à função de intimar o agressor. Ou seja, para longa jornada de luta e de avanços das mulheres isso implicará em retrocessos. As mulheres e a sociedade como um todo terá de reagir. O Brasil precisa garantir a implementação integral da Lei Maria da Penha. Assim como, precisamos insistir que não abriremos mão dos avanços obtidos como os programas intersetoriais de enfrentamento e de prevenção à violência doméstica.Portal CTB – Marcos Aurélio Ruy